segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Igreja exige punição e solidariza-se com vítimas deslizamento de rejeitos de mineração em MG

 






Belo Horizonte, 16 de dezembro de 2024.

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados" (Mt 5,6).

Nota de repúdio e solidariedade
Perante o deslizamento de pilha de rejeitos da mina Turmalina em Conceição do Pará

A Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração (CEREM) em seu compromisso com a defesa da vida, após tomar conhecimento do trágico acidente ocorrido no Município de Conceição do Pará/MG, no dia 07 de dezembro de 2024, devido ao deslizamento de parte de uma pilha de rejeitos da Mina Turmalina, de propriedade da empresa canadense Jaguar Mining, acarretando enormes prejuízos e danos a diversas famílias do local e ao meio ambiente, sente-se no dever de emitir esta nota manifestando solidariedade às Vítimas e repúdio perante a empresa autora destes graves atos.

Apesar de haver divergências nas informações advindas da imprensa e dos órgãos de controle quanto à gravidade do dano ambiental e ao número de pessoas atingidas, e de haver, por parte de algumas lideranças locais, ao que nos parece, uma tentativa de minimizar os impactos do acidente, não resta dúvidas de que os danos causados às famílias e à natureza são, por si, de elevada gravidade.

Posto isso, a Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Regional Leste-2, manifesta:

- sua indignação com o, agora revelado, descaso com que o material rejeitado da extração de ouro na Mina Turmalina, em Conceição Pará/MG, vem sendo depositado no local, com alteração na paisagem e risco de deslizamento, como de fato aconteceu;
- sua solidariedade às famílias atingidas e toda a comunidade local;
- sua reivindicação de que esse acidente seja tratado pelos órgãos de controle como “crime ambiental” e que a empresa e os responsáveis sejam devidamente processados e recebam as punições previstas em lei;
- que os danos ambientais sejam quantificados e haja recomposição do ambiente natural onde houve dano e compensações ambientais nos termos da legislação ambiental vigente;
- que as famílias sejam devidamente assistidas, indenizadas e compensadas de forma célere e justa pelos prejuísos que tiveram e ainda venham a ter;
- que sejam tomadas, imediatamente, as medidas necessárias para que acidentes como esse não se repitam;
- que haja transparência na divulgação dos trabalhos por parte da empresa.


Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, ofm. 
Coordenador da CEREM       

Dom Francisco Cota de Oliveira 
Bispo de Ste Lagoas MG 
Presidente da CEREM




terça-feira, 19 de novembro de 2024

Repúdio à Absolvição da Samarco, Vale, BHP pelo crime em Mariana




Belo Horizonte, 18 de novembro de 2024.

Ai dos que transformam o direito em veneno e atiram a justiça por terra.” (Amós 5,7).


Absolvição da Samarco, Vale, BHP Billiton, responsáveis pelo desastre-crime de Mariana, é um desrespeito para com a justiça e a dignidade humana das vítimas.

Nota de repúdio

É com sentimento de profunda indignação que publicamos esta nota de repúdio perante a decisão de absolvição da Samarco, Vale, BHP Billiton e mais de 22 pessoas indiciadas no processo criminal sobre o rompimento da barragem de Fundão, ocorrido no ano 2015 em Mariana/MG, que matou 19 pessoas e um feto, contaminou toda a Bacia do Rio Doce e os litorais nos estados do Espírito Santo e da Bahia.

A Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração repudia a decisão proferida pela juíza Patrícia Alencar Teixeira de Carvalho, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região. Tal decisão, absolve as empresas comprovadamente criminosas, considerando que estas tinham pleno conhecimento dos riscos, permitiram que o desastre ocorresse e ainda contrataram um laudo ambiental falso. O argumento utilizado para absolvição, “ausência de provas suficientes para estabelecer responsabilidade criminal”, contraria os fatos e representa um grave retrocesso na busca por justiça.

Não temos dúvidas que decisões como esta são uma mola propulsora para que outros crimes se repitam, como foi o caso de Brumadinho e outros que ainda poderão vir.

Queremos também manifestar nossa solidariedade às pessoas atingidas pelo maior crime ambiental da história do Brasil. Neste momento de tanta dor, que marca os 09 anos deste crime, elas foram novamente violentadas, agora pelas instâncias da Justiça, a quem caberia defendê-las em seus direitos, enquanto vítimas deste crime brutal.

Esta violência, decorrente da absolvição dos autores do escandaloso crime das empresas mineradoras em Mariana, reafirma a arquitetura da impunidade que tem caracterizado as decisões da Justiça brasileira frente aos crimes socioambientais. Em seu desenrolar, esta injustiça para com as vítimas do desastre-crime de Mariana prevaleceu no decorrer de toda tramitação do processo, acentuando-se na repactuação que as excluiu da decisão final, apesar de serem as principais envolvidas e interessadas, favorecendo governos e empresas em detrimento de seus direitos. Com este desfecho as vítimas são afrontadas pela Decisão Judicial que absolveu as empresas criminosas e seus dirigentes.

Resulta evidente, com esta Decisão Judicial, que os únicos verdadeiramente punidos por esse crime são os atingidos e atingidas, que perderam seus entes queridos, sua história, seu modo de vida, suas fontes de renda e, até hoje, não receberam a devida reparação. Este é um grave atentado à justiça e à dignidade humana das vítimas.

A Comissão Episcopal para Ecologia Integral e Mineração continuará firme na fé, denunciando as injustiças cometidas neste crime, tanto da parte de seus autores como dos Órgãos de Justiça, e comprometida na luta por uma reparação integral que garanta, por uma questão de justiça e de humanidade, a indenização, a condenação penal dos responsáveis e a não repetição de crimes como este.


Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, OFM

Coordenador da CEREM


Dom Francisco Cota de Oliveira

Bispo Diocesano de Sete Lagoas

Presidente da CEREM




quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Painel - Impactos Não-Econômicos das Mudanças Climáticas COP29

 

O Pavilhão da Fé na COP29, um espaço que apresenta mais de 40 sessões que oferece diversas perspectivas religiosas e éticas sobre como aprimorar os esforços de ação climática sediou no dia 13 de novembro, um painel com foco em abordar os impactos não econômicos causados pelas mudanças climáticas, como a perda do património cultural, da identidade e do conhecimento indígena. Enfatizando uma abordagem baseada nos direitos humanos, a discussão também destacará a importância de apoiar as comunidades vulneráveis ​​na captura de toda a extensão destas perdas não quantificáveis.

Esse painel foi organizado pela Federação Luterana Mundial, Brahma Kumaris, Dominicanos, Franciscanos Internacionais, Conselho Mundial de Igrejas, Igreja Evangélica Luterana na América e a . Conferência de Igrejas de Toda a África. Como painelistas participaram o Frei Rodrigo Péret - Franciscans International, Candice Dagilan - Estudante do Mirian Coollege, Filipinas e Ramon Pichs - Vice Presidente do IPCC, e como moderadora Elena Cedillo - Lutheran World Federation.

Segue o texto da apresentação do Frei Rodrigo.

Para Além da Perda Material: Explorando Impactos Não-Econômicos das Mudanças Climáticas através de Perspectivas Baseadas na Fé
Frei Rodrigo Péret, ofm

Como franciscanos, baseamo-nos no Ensino Social Católico, particularmente na encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, para abordar a crise climática. Emitida antes do Acordo de Paris de 2015, Laudato Si’ enfatiza nosso dever moral de cuidar da nossa casa comum e defende a Ecologia Integral, destacando a interconexão entre questões ambientais, econômicas e sociais, e chamando para ações concretas em sustentabilidade ambiental e justiça social.

Portanto, "Laudato Si'" também nos orienta a abordar as Perdas e Danos Não-Econômicos (NELD -sigla em Inglês) causados pelas mudanças climáticas, enfatizando o valor intrínseco de toda a criação e a profunda conexão entre o bem-estar humano e ambiental.

As NELD causadas pela crise climática impactam profundamente os vínculos sagrados que compartilhamos com o mundo natural e nosso dever ético de protegê-lo. Cada espécie possui valor intrínseco e desempenha um papel vital na teia da vida. À medida que a biodiversidade diminui, a riqueza da criação se reduz, desequilibrando o ecossistema e afetando comunidades indígenas cujas identidades estão estreitamente ligadas ao seu entorno. A mudança climática perturba o patrimônio cultural, o conhecimento tradicional e as práticas espirituais, deixando muitas comunidades desconectadas de seus territórios sagrados.

Os impactos psicológicos são profundos; à medida que os espaços naturais familiares se degradam, as pessoas experimentam ansiedade e tristeza, ressaltando nossa interconexão com o planeta. Para aqueles que enfrentam deslocamento, como as comunidades insulares ameaçadas pela elevação do nível do mar, as perdas são mais tangíveis e imediatas, rompendo laços com terras ancestrais e desafiando o direito a um lar estável. As mudanças climáticas também ameaçam locais sagrados, centrais para muitas crenças, apagando conexões com locais de importância espiritual.

Esses impactos apontam para um desafio ético mais amplo. As tradições religiosas nos convocam a cuidar da criação e a defender a justiça para as futuras gerações. A exploração ambiental de hoje compromete sua capacidade de viver em harmonia com a natureza, tornando a mudança climática uma questão moral profunda. Reconhecer essas perdas não-econômicas nos instiga a responder com compaixão e respeito pelo valor intrínseco da vida, pela sacralidade da natureza e por nossa responsabilidade compartilhada com as futuras gerações.

A cada ano, defensores de direitos humanos (direitos fundiários) e ambientais são assassinados por ousarem resistir à exploração ambiental ao redor do mundo. A Global Witness documentou que 196 defensores foram assassinados em 2023 por exercerem seu direito de proteger suas terras e o meio ambiente. O número real é provavelmente maior. Isso eleva o total de assassinatos para mais de 2.000 em todo o mundo desde que a Global Witness começou a relatar esses dados em 2012. Hoje, a Global Witness estima um total de 2.106 assassinatos.

Além desses impactos imediatos, as mudanças climáticas levantam questões mais profundas sobre nossas responsabilidades éticas e morais como guardiões do planeta. Muitas tradições religiosas e culturais convocam a humanidade a cuidar da criação, instando-nos a proteger a Terra para as futuras gerações. A exploração e destruição dos ecossistemas por ganhos econômicos de curto prazo não é apenas uma questão ambiental, mas uma falha moral, que compromete a saúde do planeta para aqueles que virão depois de nós. Essa injustiça intergeracional compromete a capacidade das futuras gerações de atenderem suas necessidades, praticarem suas tradições e viverem em harmonia com a natureza.

A encíclica clama por um diálogo inclusivo, especialmente envolvendo comunidades indígenas e vulneráveis, guardiãs de conhecimentos ecológicos e culturais essenciais. Essa abordagem inclusiva promove respostas holísticas e culturalmente sensíveis que apoiam a resiliência e identidade das comunidades. Laudato Si’ defende uma estrutura ética compassiva nas negociações climáticas, enfatizando solidariedade e justiça. Valorizar as dimensões espirituais e culturais inspira estratégias que abordam todo o escopo de perdas e danos.

Na COP29, espera-se que as discussões sobre uma nova meta de financiamento climático abordem como o Fundo de Perdas e Danos pode apoiar aqueles impactados pelas mudanças climáticas, definindo e abordando as NELD de maneira eficaz. Os países mais responsáveis pelas emissões devem assumir uma maior responsabilidade para ajudar os mais afetados.

Nossa defesa se alinha com outras organizações baseadas na fé, sensibilizando sobre as NELD na ONU. Com laços estreitos com comunidades afetadas, grupos baseados na fé desempenham um papel único ao destacar como o financiamento insuficiente afeta vidas. Através de esforços em coalizão, contribuímos para uma compreensão mais profunda das perdas não-econômicas induzidas pelo clima.

Para concluir meu discurso, gostaria de destacar uma questão relacionada e de igual importância ao nosso tema. Como franciscanos, acompanhando os processos da COP e a realidade das comunidades em situação de vulnerabilidade que atendemos, alertamos contra as “falsas soluções” promovidas como ação climática, mas que, em última análise, agravam a crise. Essas soluções mascaram a imposição de grandes sacrifícios e impactos em regiões do mundo que menos contribuíram para a mudança climática, mas que detêm bens comuns vitais, que são explorados nessas chamadas “soluções verdes”. Sem mudanças estruturais, a tecnologia sozinha não pode resolver a crise climática e levará a ainda maiores perdas e danos.

Nos opomos à ideologia da "economia verde" por transformar a natureza e a biodiversidade em mercadorias através de sistemas como o comércio de carbono, que monetizam a conservação ambiental. No Sul Global, os esquemas de comércio de emissões de gases de efeito estufa, vinculados aos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo da ONU, focam em florestas e mercados de carbono, criando novos tipos de propriedade ao transformar o CO₂ sequestrado em ativos financeiros negociáveis.

A economia verde atribui valor econômico a processos naturais, como a fotossíntese, como “serviços ecossistêmicos”, vendo-os como estoques de capital avaliados pela renda futura que geram. A avaliação econômica frequentemente depende dos preços de mercado, enfatizando a acumulação de capital em detrimento de considerações sociais ou ecológicas. Através de iniciativas como mercados de carbono e REDD, grandes áreas florestais são vinculadas a créditos de carbono, transformando a preservação ambiental em ativos financeiros. Esse processo introduz camadas complexas de propriedade sobre a posse tradicional da terra, desafiando visões culturais que valorizam a natureza de forma intrínseca. Iniciativas semelhantes, como a “agricultura inteligente para o clima”, vinculam o armazenamento de carbono no solo aos mercados de compensação de carbono, sobrecarregando agricultores pobres em países em desenvolvimento.

A ideologia da “economia verde” propõe também à chamada “transição energética” ou melhor, à falsa narrativa de “energia limpa”, pois tecnologias como painéis solares e turbinas eólicas exigem mineração intensiva, que prejudica comunidades locais e ecossistemas, principalmente no Sul Global. Essas tecnologias demandam extração e processamento intensivos e extensivos de minerais. A mineração leva, em todos os lugares do mundo, a consequências sociais e ambientais adversas, desde violência e práticas insustentáveis até violações de direitos humanos e degradação ambiental. Essa transição energética alimenta conflitos territoriais e exacerba padrões históricos de desigualdade, à medida que minerais críticos são extraídos principalmente do Sul Global para beneficiar o Norte Global. Uma transição que perpetua padrões de exploração colonial, beneficiando o Norte Global enquanto sobrecarrega regiões vulneráveis. A demanda por minerais vitais para energia limpa está aumentando, com muitos depósitos localizados em terras indígenas, escalando conflitos e degradação ambiental.

Uma resposta real exige uma transformação estrutural, não apenas uma transição, mas uma transformação em direção a estilos de vida que garantam justiça ambiental e climática para as futuras gerações. Comunidades baseadas na fé, inspiradas pelo chamado do Papa Francisco para uma “sobriedade feliz” em Laudato Si’, devem assumir uma posição profética contra as falsas soluções e defender uma verdadeira mudança sistêmica para superar o modelo insustentável que nos levou a essa crise.

Em vez de ver o planeta como um recurso, devemos considerá-lo uma fonte de vida.



terça-feira, 29 de outubro de 2024

ACORDO DO DESASTRE/CRIME AMBIENTAL SAMARCO/VALE/BHP: As violações de direitos persistem

Belo Horizonte, 29 de outubro de 2024.

NOVO ACORDO DO DESASTRE/CRIME AMBIENTAL SAMARCO/VALE/BHP.
As violações de direitos persistem.

“Quem vai me trair é aquele que come no mesmo prato que eu” (Mateus, 26 -23).

Este é o sentimento que percebemos dos atingidos e atingidas sobre a repactuação, pois a exclusão das principais vítimas das mesas de negociações compromete não apenas a transparência do processo, mas também seu principal objetivo: fazer justiça. Nove anos do rompimento da barragem do Fundão, ocorrido em 05 de novembro de 2015, em Mariana/MG, nenhum ator foi julgado e condenado pelo ocorrido que vitimou 20 vidas humanas, a fauna, a flora e prejuízos incalculáveis.

Ao longo do processo de repactuação, constituído desde 2019, os atingidos nunca foram devidamente ouvidos. As negociações envolvendo diversos atores se desenvolveu sem a verdadeira transparência e deixando de lado, como sempre, os devidos direitos dos atingidos. O que vimos nesta nova repactuação foram os governos Federal, de Minas Gerais e do Espírito Santos reivindicando suas partes na repactuação para aplicar em seus programas e obras de infraestrutura como fizeram no acórdão de Brumadinho em Minas Gerais.

O rompimento da barragem em Fundão/Mariana afetou profundamente a população dos municípios ao longo do curso e da foz do Rio Doce. Os impactos foram sentidos nas mais diversas dimensões da vida de milhares de pessoas atingidas: econômicas, habitacional, aumento da violência e da incidência de doenças, da discriminação racial e da evasão escolar. Seus efeitos atingiram severamente os modos de vida de diferentes populações tradicionais que habitam a região, cujo modo de ida depende do uso de recursos naturais.

A Fundação Getúlio Vargas fez um levantamento dos impactos sociais, ambientais e econômicos do rompimento da barragem de Fundão/Mariana. O estudo indica que, em alguns municípios, a contaminação das águas e do solo pode acarretar às pessoas perda de até 24 anos a menos de vida. O Projeto Rio Doce usou como base dados de até 2021 do DataSUS, do Ministério da Saúde, e comparou as taxas de incidência de doenças nos municípios atingidos com as de áreas não afetadas. (cf. Jornal Nacional/G1 de 21/10/2024).

O estudo da FGV mostra que os rejeitos de minérios espalhados pelo rompimento da barragem eram compostos principalmente por ferro, silício e alumínio. Metais pesados que podem causar também danos como alucinações, paralisia e problemas de pele. O diagnóstico da FGV, mostra ainda que, de 2015 a 2018, a perda estimada na economia de Minas Gerais e do Espírito Santo foi na ordem de quase R$ 500 bilhões e interrompeu atividades produtivas em diversos municípios.

O novo acordo para reparação dos danos causados pelo rompimento da Barragem, conduzido pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Secretaria-Geral da Presidência da República e assinado no 25 de outubro de 2024, no Palácio do Planalto, reafirma a dinâmica da impunidade e gera frustração e abatimento por parte das pessoas atingidas, que se sentem mais uma vez traídas e usadas pelos que negociaram o acordo. 

Percebe-se os mesmos vícios e erros cometidos em 2016 e que começa de forma incerta e com desconfiança por parte das principais vítimas do fatídico desastre-crime.

Unimos as nossas vozes e forças em favor das pessoas atingidas que são as mais frágeis em todo o processo com seu grito de socorro sem alcance junto às Instituições de Justiça e Autoridades Governamentais.

Mais uma vez denunciamos a opção por uma reparação negociada com a lógica da conciliação e concessão de ampla liberdade de manobra e, até mesmo, controle do processo de reparação por parte das empresas autoras do crime.

Perante o absurdo desta repactuação fica a questão: a forma mais adequada para lidar com os grandes crimes e desastres ambientais é a busca do consenso com as empresas autoras e responsáveis por estes crimes?

Na Encíclica Laudato Si, o Papa Francisco ao falar da franqueza das reações às situações que  “provocam os gemidos da irmã terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”, conclui: “Torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegure a proteção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder derivadas do paradigma tecno-econômico acabem por arrasá-los não só com a política, mas também com a liberdade e a justiça.” (Laudato Si 53)

Dom Francisco Cota de Oliveira
Bispo Diocesano de Sete Lagoas
Referencial da CEREM

Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, OFM
Coordenador CEREM




sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Requerimento ao MPF e ALMG para revogação de decreto do Governo de Minas por violar Convenção 169 da OIT




Destinatários:
Ministério Público Federal;
Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.

Neste: Denuncia de prováveis violações de direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais.


A Comissão Episcopal para a Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste-2 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Leste 2), cuja atribuição e finalidade é promover a defesa dos direitos humanos, sociais e ambientais, vem expressar sua veemente preocupação com a edição do decreto estadual nº 48.893, de 11/09/2024 e, ao mesmo tempo, denunciar prováveis violações aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais à Consulta Livre, Prévia, Informada e de Boa Fé, ao direito à sua autoidentificação e aos seus direitos territoriais.

Nesse sentido, vem requerer aos órgãos de fiscalização atenção para fazer cessar a VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS PERPETRADOS PELO ESTADO DE MINAS GERAIS PARA SATISFAZER INTERESSES EMPRESARIAIS CONTRA OS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS, TENDO COMO PROVA CABAL E ROBUSTA DAS ALEGADAS VIOLAÇÕES A EXPEDIÇÃO E PROMULGAÇÃO DO DECRETO ESTADUAL Nº 48.893, de 11/09/2024

DOS FATOS:
DA VIOLAÇÃO AO DIREITO A CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA.
A pretexto de regulamentar, sobre a Consulta Livre, Prévia e Informada, de que trata o art. 6º da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais, o Estado de Minas Gerais, cujo representante e autoridade máxima é o Governador Romeu Zema, publicou, no dia 11 de setembro de 2024, referido decreto, sem, pasmem, a realização de consulta livre prévia e informada, em confronto ao que estabelece o art. 6º da CONVENÇÃO 169 DA OIT que dispõe:
ARTIGO 6º 1. Na aplicação das disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) criar meios pelos quais esses povos possam participar livremente, ou pelo menos na mesma medida assegurada aos demais cidadãos, em todos os níveis decisórios de instituições eletivas ou órgãos administrativos responsáveis por políticas e programas que lhes afetem; c) estabelecer meios adequados para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas próprias desses povos e, quando necessário, disponibilizar os recursos necessários para esse fim. 2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequada às circunstâncias, no sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado.

 A mera publicação do decreto estadual em debate, por si só já afronta e ao mesmo tempo viola o disposto do art. 6º da Conv. 169 da OIT, que preceitua que toda e qualquer medida legislativa ou administrativa suscetível de afetar os interesses dos povos e comunidades tradicionais devem passar pela consulta livre prévia e informada. Malgrado, o regramento estabelecido na Convenção o Estado de Minas Gerais publicou o malfadado decreto SEM FAZER OU REALIZAR QUALQUER TIPO DE CONSULTA AOS POVOS INTERESSADOS.


DA VIOLAÇÃO AO DIREITO DOS PCT’s SE AUTORRECONHECEREM COMO POSTULADO DO
DIREITO A AUTOINDENTIFICAÇÃO.

A aberração legiferante do Governador Romeu Zema não para por aí, pois, teima em ferir mortalmente os direitos dos PCT’s no que tange também ao direito denominado de autorreconhecimento, auto-atribuição, autodefinição, dentre outras denominações. A redação desse texto legislativo, desse malsinado decreto priva as comunidades de exercerem seu direito à autodefinição.

O decreto estadual em testilha dispõe, em afronta às Leis que regulam sobre tal matéria, que somente se reconhecerá como Povos e Comunidades tradicionais sob o crivo dos seguintes órgãos estatais elencados no art. 2º, I, alíneas a – c. veja:

Art. 2º – O licenciamento ambiental, realizado no âmbito do Estado, que, na data de sua formalização, afete povos indígenas, comunidades quilombolas ou povos e comunidades tradicionais, ensejará a realização de CLPI, quando, cumulativamente:
I – tratar-se de:
a) povos indígenas reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas;
b) comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares;
c) povos e comunidades tradicionais certificados pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais.
II – estiverem localizados em área na qual haverá o desenvolvimento das atividades passíveis de licenciamento ambiental do empreendimento ou em faixas de restrição estabelecidas no Anexo I da Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, do Ministério do Meio Ambiente, da Justiça, da Cultura e da Saúde, quando se tratar de projetos de significativo impacto ambiental, assim considerados pelo órgão ambiental competente, com fundamento em Estudo de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental – EIA-Rima.

O decreto do Govenador Romeu Zema, ao tentar limitar o direito dos PCT’s no que tange apenas reconhece-los através do crivo dos órgãos de estado, fere de morte o direito a liberdade de autoidentificação que é   fundamental na regra estabelecida pela Conv, 169, cuja essência desse Direito, os Povos e Comunidades Tradicionais, se reconhecem e por via de consequência autodeterminam-se, tendo por sua vez o direito também, de autogerir-se, atribuindo-se identidade de forma autônoma, sem a necessidade de autorização ou qualquer tipo de intervenção estatal.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), preceitua no que tange aos direitos à autoidentificação, como um critério crucial para a definição dos PCT’s.

As regras da Convenção 169 da OIT foram incorporadas em vários diplomas normativos no Brasil, a exemplo do art. 3ª do Decreto n.º 6040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, regula a o conceito de autorreconhecimento dos PCT’s

Art. 3º Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e ‘que se reconhecem como tais’, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

DA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS TERRITORIAIS DOS PCT’S.

Ainda no art. 2º, II do malsinado decreto do Governador Romeu Zema do E.MG., por via oblíqua e subliminar tenta permitir projetos de interesses econômicos em terras tradicionalmente ocupadas. Diz o texto do decreto que as terras onde se localizam os PCT’s reconhecidos somente por órgãos de governo, poderão as empresas ao realizar o licenciamento promover a CLPI. Com isso, novamente o decreto estadual permite a realização de empreendimentos de alto ou significativo impacto ambiental, sem, contudo, estabelecer taxativamente as condições da exploração naquelas terras tradicionalmente ocupadas. Com relação aos direitos territoriais a Conv. 169 da OIT, como instrumento legal protetivo dos interesses do PCT’s, dispõe que os estados nacionais signatários desta Convenção deverão a qualquer custo proteger as terras tradicionalmente ocupadas da ganância e cobiça de empreendimentos e empresários sem escrúpulos.

A CONV. 169 da OIT, adota critérios sobre a anulabilidade de contratos, registros de compra e venda de terras, permutas, comodatos e qualquer espécie de pacto para aquisição de terras em territórios tradicionais. Toda a compra e venda de terras em territórios de povos e comunidades tradicionais deverá ser anulada por expressa determinação do ARTIGO 17 DA CONVENÇÃO 169 DA OIT, que no parágrafo 3 diz:

"Deverão ser tomadas medidas para impedir que pessoas alheias a esses povos tirem proveito de seus costumes ou do desconhecimento das leis por parte de seus membros para assumir a propriedade, posse ou uso de terras que lhes pertençam".

Desse modo, o uso, gozo e fruição e a disposição das terras tradicionalmente ocupadas encontram restrições conforme disposição legal contida na Conv. 169, acima citada, por isso o decreto estadual em comento NÃO PODE regulamentar acima do que dispõe o tratado que tem status de norma SUPRALEGAL.

Perante o exposto, vem requerer a devida apuração das violações de direitos acima tratadas, e ao final, em se comprovando o conflito entre a norma editada pelo Estado de Minas Gerais, por seu representante, o Governador Romeu Zema, que sejam, no âmbito das competências de cada instituição fiscalizadora, tomadas as devidas medidas para fazer cessar as violações em questão, com a cassação, anulação e ou sustação dos efeitos jurídicos do mencionado decreto estadual.

Pede deferimento.
Belo Horizonte, 18 de setembro de 2024





domingo, 22 de setembro de 2024

Conselho Mundial de Igrejas: Terra como Bem Comum, Não como Mercadoria

 

Limuru, Quênia (Foto Frei Rodrigo Péret)

O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) realizou uma Consulta em agosto de 2024 no Quênia sobre o tema "Terra como Bem Comum, Não como Mercadoria". O evento reuniu teólogos, ativistas e líderes religiosos, de vários continentes, para discutir a importância de proteger a terra como um bem comum, destacando lutas em diversas partes do mundo, incluindo as lutas contra o avanço da mineração, no Brasil, onde a chamadas energias limpas exigem mais extração de minerais e terras raras. A resistência contra projetos de compensação de carbono em Serra Leoa e lutas de comunidades indígenas e marginalizadas, como o movimento Land Back Lane no Canadá. A Consulta resultou em um comunicado teológico, que convoca as igrejas a adotarem uma postura ativa na defesa dos territórios e propõe ações concretas, como a transformação de terras da igreja em espaços comunitários, promovendo justiça social e econômica , bem como e a investigação de casos de apropriação indevida de terras, reforçando o compromisso das igrejas em buscar justiça redistributiva e reparadora.

A seguir leia o Comunicado Teológico:

Consulta NIFEA sobre Terra como Bem Comum, não como Mercadoria 
28-30 de agosto de 2024, Limuru
Comunicado Teológico sobre Terra como Bem Comum

Vindos de terras diversas, belas e ao mesmo tempo afligidas na África, Ásia-Pacífico, América Latina e Caribe, Oriente Médio, Europa e América do Norte, nós – teólogos, ativistas, acadêmicos, estudantes e trabalhadores da igreja – nos reunimos de 28 a 30 de agosto de 2024 na Universidade St. Paul em Limuru, Quênia, para a Consulta sobre “Terra como Bem Comum, não como Mercadoria” da Nova Arquitetura Financeira e Econômica Internacional (NIFEA). Enraizado em uma visão de uma Economia da Vida, o NIFEA é uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas, a Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas, a Federação Luterana Mundial, o Conselho Mundial Metodista e o Conselho para a Missão Mundial.

Tirando sabedoria e força de nossas crenças e nossa conexão com a terra, examinamos os sistemas econômicos e sociais injustos que têm separado as pessoas da terra e degradado a própria terra, que é a base de toda a vida. Reconhecemos que a terra tem dignidade e direitos inerentes em si mesma, não apenas porque tem valor para os seres humanos. No entanto, também compreendemos que a criação, incluindo os seres humanos, e a terra têm uma relação profundamente simbiótica. Além disso, reconhecemos que a terra não existe por si só, mas está entrelaçada com toda a matéria do universo.

Em nossos tempos, no entanto, a terra está sendo cada vez mais reduzida a uma mercadoria. Está sendo abstraída do restante da criação, à qual está integralmente conectada. No contexto atual, a terra é vista como propriedade privada; a posse e o controle sobre ela geram poder econômico, político, cultural e simbólico.
Portanto, discutimos caminhos e estratégias para construir um entendimento de terra para o bem comum, em vez de para o lucro. Oferecemos este comunicado teológico e um quadro de advocacia como nossa reflexão coletiva e compromisso de promover visões e políticas econômicas alternativas que reconheçam a terra como bem comum e não como mercadoria.

Discernimos que...

Sob a influência do capitalismo globalizado, a terra tem sido cada vez mais retirada da posse comum e privatizada para fins de lucro. Tornou-se um ativo abstrato para investimento especulativo. Em nome de uma “economia verde” e impulsionado pelo desenvolvimento de culturas de agrocombustíveis, esquemas de compensação de carbono e pela demanda por minerais raros necessários para tecnologias de geração de energia de baixo carbono, o apropriação de terras intensificou-se, despojando comunidades e até mesmo gerações futuras; fomentando fome, violência e violações de direitos humanos; e produzindo “zonas de sacrifício” de destruição ambiental, aprofundando a injustiça climática. Cada vez mais vemos terras comuns sendo cercadas. Nas áreas rurais, os bens comuns utilizados para a pastagem e agricultura de subsistência estão sendo usurpados por grandes corporações ou projetos de desenvolvimento. Nas áreas urbanas, há um encolhimento dos espaços públicos à medida que estes estão sendo comercializados. Em vez de ser o espaço de onde a vida emerge e prospera, a terra tornou-se reduzida a propriedade privada da qual se deriva ganho financeiro. Reconhecemos a conivência de corporações multinacionais, elites locais e o estado em impulsionar essa agenda.

As raízes dessa questão foram rastreadas até o colonialismo, que visava afirmar a posse e o controle sobre a terra. As potências coloniais frequentemente utilizavam meios violentos e justificavam suas ações utilizando a teologia cristã. A terra era considerada "terra nullius", como ‘vazia,’ ignorando as populações nativas e indígenas, bem como a fauna e flora que viviam na terra. A terra e seus habitantes foram conquistados e subjugados, e as populações locais foram frequentemente deslocadas, forçadas a trabalhar para os colonos ou aniquiladas para se apoderar do controle.

O legado do colonialismo continua a se manifestar na apropriação contemporânea de terras de comunidades indígenas e nativas, tratando a terra como um recurso a ser explorado, em vez de como um parente ou algo com quem se deve conviver. Essa visão contrasta fortemente com a crença indígena de que os seres humanos pertencem à terra, e não o contrário. Durante uma visita de imersão, encontramos um grupo de ativistas indígenas Ogiek que falaram sobre sua luta para recuperar suas terras, preservá-las e viver suas vidas em relação com a Terra. Eles perguntaram: Quando nossa terra natal será restaurada? Eles e os participantes que compartilharam exemplos de apropriação de terras e exploração expressaram o clamor por justiça e desafiaram as igrejas a romperem o silêncio e se posicionarem ao lado dos marginalizados.

Reconhecemos que a posse e o controle da terra estão profundamente ligados ao patriarcado e à raça. Sob o controle patriarcal, a terra tem sido possuída e controlada por homens, embora as mulheres estejam frequentemente envolvidas em práticas agrícolas de subsistência que alimentam famílias e comunidades. Em comunidades ao redor do mundo, as mulheres são marginalizadas quando se trata de acesso e tomada de decisões sobre a terra. Além disso, seu conhecimento está sendo simultaneamente roubado e subvalorizado. Da mesma forma, também encontramos um elemento racial na questão da terra, com raças dominantes tirando o controle da terra das comunidades racializadas que oprimem. Em muitos casos, a degradação da terra e a expulsão das populações dela têm sido a causa de migração e migração forçada.

Em meio às deslocações sociais e ecológicas geradas pela transformação da terra em mercadoria, surgiram movimentos de resistência contra a colonização, justiça fundiária e proteção social e ecológica. Movimentos rurais, urbanos e indígenas têm estado na linha de frente dessas lutas. Nós celebramos particularmente as histórias de resistência e esperança que compartilhamos e ouvimos, incluindo, entre outros, a Black Farmer's Food Security Network nos Estados Unidos, ações de igrejas pela justiça alimentar e climática em Serra Leoa, o Land Back Lane e movimentos sociais que viram os povos indígenas e as mulheres se mobilizarem por direitos à terra e florestas no Canadá e na Índia.

Afirmamos... 

Deus criou a terra e a chamou de boa. A terra é boa em si mesma e, na narrativa bíblica da criação, ela é boa mesmo antes dos seres humanos serem criados. No entanto, a terra também é valorizada por sua fecundidade e pela abundância que traz para a vida não humana e humana. Juntamente com os oceanos, rios e lagos, é o espaço onde Deus age e o lugar dentro do qual a maioria da vida encontra seu solo e existência. No entanto, não queremos romantizar a terra ou a natureza como benevolentes; entendemos que também podem ser violentas e perigosas para muitas comunidades vulneráveis, especialmente em uma era de mudanças climáticas induzidas pelo ser humano.

“O Senhor é dono da terra e de tudo o que nela existe” (Salmo 24:1). Isso desafia a noção de propriedade da terra, que entra em conflito com a ideia bíblica de que os humanos são meros guardiões da Terra. No entanto, também precisamos reconhecer a complexidade desse texto. Elevar um direito divino acima dos direitos humanos levou à violação dos direitos das pessoas por aqueles que se veem como os eleitos. Vemos que isso acontece até hoje, no contexto da Palestina, onde o direito divino está sendo invocado para confiscar terras dos palestinos. Além disso, verificamos que a ideia de que a terra pertence a Deus foi historicamente invocada pelas potências coloniais para reivindicar terras sob o pretexto de realizar uma missão divina. À luz disso, os participantes foram lembrados da necessidade de desafiar teologias e práticas enganosas. Reconhecemos ainda que a linguagem e as teologias que falam dos seres humanos como guardiões e administradores caem em noções hierárquicas que elevam os seres humanos e suas necessidades e prioridades acima das da terra e da criação não humana. Essas teologias nem sempre foram úteis e, às vezes, até prejudiciais e destrutivas.

As leis do Jubileu e do Sábado regem a visão bíblica da terra; essas leis não apenas prescrevem descanso para a terra, mas também exigem a devolução da terra àqueles de quem ela foi tomada. Na visão bíblica, todos deveriam ter acesso à terra, e ela não era reservada apenas aos poderosos. Em vez disso, a terra estava inserida em uma relação de aliança entre as pessoas e Deus, e quebrar essa aliança era considerado um pecado contra Deus. A Bíblia mostra que nem mesmo os reis tinham o direito de tirar a terra de seus súditos.

Reconhecemos Mateus 5:5, que ressoa com o Salmo 37, dizendo: “Bem-aventurados os humildes, pois eles herdarão a terra”. A terra não é destinada aos poderosos; somos lembrados repetidas vezes de que os altivos serão derrubados e humilhados, enquanto os humildes serão satisfeitos. Reconhecemos que a terra é destinada aos pobres e despossuídos, e que são eles, e não os poderosos, que herdarão a terra.

Compreendemos... 

Que a terra tem sua própria agência e dignidade. As comunidades indígenas nos ensinam que os humanos e a terra estão profundamente conectados. Não podemos imaginar a vida sem a terra e vice-versa. A terra não é algo que deve ser possuído e explorado para acumulação de riqueza. Ao contrário, ela é um lar comum para toda a criação, a ser preservada para a manutenção da vida. A terra desempenha um papel importante na regulação do clima, dos sistemas hídricos e de outros processos ecológicos essenciais para a vida.

Reconhecemos que só poderemos mudar este sistema econômico prejudicial se ouvirmos os mais oprimidos. Somos chamados não apenas a ouvir e sermos guiados pelas vozes dos empobrecidos e despossuídos, mas também a ouvir a terra. Jó 12:8 nos lembra de falar com a Terra, e ela nos ensinará. Somos chamados não apenas a tratar a Terra com cuidado, mas também a aprender com ela.

Comprometemo-nos a... 

Como igrejas e participantes da Consulta NIFEA sobre “Terra como Bem Comum, não como Mercadoria,” arrependermo-nos de nossas teologias e ideologias antropocêntricas que veem a terra como utilitária e servindo aos interesses humanos, em vez de ter direitos e dignidade inerentes. Com espírito de humildade, comprometemo-nos a ouvir a terra.

Confessamos nossa cumplicidade na apropriação de terras. Comprometemo-nos a documentar casos de apropriação de terras, a estar presentes para as comunidades afetadas e a compartilhar suas histórias de resistência.

Comprometemo-nos a conscientizar e fomentar a reflexão espiritual sobre a terra como bem comum.

Comprometemo-nos a ser comunidades proféticas de resistência capazes de falar a verdade ao poder e denunciar a injustiça fundiária.

Comprometemo-nos a trabalhar por justiça redistributiva, reparadora e restauradora, e particularmente por ações e solidariedade com agricultores, mulheres e comunidades indígenas que foram negadas o acesso à terra que lhes é de direito.

Chamamos... 

Para ações concretas das igrejas, como converter terras de propriedade da igreja em espaços comuns e hortas comunitárias para o bem público; 

Para que as igrejas realizem missões de apuração de fatos sob a perspectiva dos despossuídos, incluindo a busca por publicar a própria cumplicidade das igrejas na apropriação de terras; 

(Leia o mesmo texto original em Inglês)

Fonte: World Council of Churches


quinta-feira, 4 de julho de 2024

Colonialismo energético, território de sacrifício. A real Face da Transição Energética no Vale do Jequitinhonha


Na segunda década do século XXI, o discurso sobre mudanças climáticas e a transição para uma energia dita coma limpa, promovido por corporações e governos, esconde um aumento crescente e devastador da exploração de territórios. Isso ocorre tanto por meio de projetos minerários quanto de produção de energia e infraestrutura. Portanto, é falso afirmar que se trata de uma verdadeira transição para energia limpa. Na realidade, trata-se de mais mineração nos territórios, causando sérios danos ecológicos e sociais em vários países, especialmente no Sul Global.

Ainda, sob a fachada de progresso e desenvolvimento, as corporações e os governos promovem falsas promessas de um futuro melhor. No entanto, a exploração de novas fronteiras minerárias e de outros grandes projetos do capital é apenas mais um capítulo de uma longa história de promessas vazias e exploração contínua. Um relatório do Banco Mundial destaca que para alcançar uma grande capacidade de “energia renovável” exigirá um aumento drástico na extração minerária de materiais como o lítio, agravando a crise de sobre-extração e seus impactos negativos inerentes, como o desmatamento, destruição de solos, perda de biodiversidade, contaminações e danos aos recursos hídricos. 

O colonialismo energético está por trás desses conflitos, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos em detrimento das populações locais e da destruição de muitos territórios que são decepados e incorporados na “máquina do lucro”. O capitalismo em crise busca se reconfigurar, agora com o mito da energia e produção verde. 

No Vale do Jequitinhonha, o chamado colonialismo energético se manifesta pela desapropriação, fragmentação e transformação de terras e territórios através de megaprojetos de mineração. Esse modelo de exploração imposto à região é o mesmo que se espalha por toda Minas Gerais. Não existe mineração verde ou sustentável. A mineração consiste em arrancar o minério da terra, exportá-lo, às vezes processa-lo e deixar um rastro de destruição. Essa prática causa profundos impactos nas práticas e valores culturais, ecológicos e agrícolas, perpetuando um modelo econômico extrativista que beneficia poucos no Norte Global, em detrimento das populações locais.

Essa é uma roupagem nova para um processo já visto muitas vezes no Vale do Jequitinhonha. Ciclos de exploração econômica têm se repetido desde o século XVIII, com as riquezas sendo constantemente extraídas em benefício de poucos. Desde a mineração de pedras preciosas, a criação de grandes fazendas e monocultivos de eucalipto e a produção de energia com a barragem de Irapé.  Na atual busca pela extração minerária do lítio vemos a usurpação de terras sob os velhos pretextos de "desenvolvimento" e "progresso". Desta forma, os habitantes do Vale têm sido sistematicamente prejudicados e marginalizados.

A Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB e as instituições abaixo assinadas denunciam veementemente essas práticas predatórias e reitera que as promessas de desenvolvimento e riqueza para a região não mais nos convencem. As comunidades tradicionais e os povos do Vale do Jequitinhonha continuarão a resistir e lutar pela justiça e pelo reconhecimento de seus direitos.

Belo Horizonte, 04 julho 2024

Comissão Episcopal Regional para Ecologia Integral e Mineração do Regional Leste 2 da CNBB

Rede Igrejas e Mineração Minas Gerais

Comissão Pastoral da Terra

Caritas Brasileira

Conselho Indigenista Missionária

Conselho Pastoral dos Pescadores

Comissão de Meio Ambiente da Província Eclesiástica de Mariana

Serviço Interfraciscano de Justiça Paz e Ecologia

Fórum Permanente em Defesa da Bacia do Rio Doce

Instituto Padre Nelito Dornelas

Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade