sábado, 3 de março de 2012

A solução é a “economia verde”?

Ivo Lesbaupin
A humanidade está hoje na direção da não-sustentabilidade, caminhando rapidamente para tornar a Terra inabitável.
O mundo está sofrendo um aquecimento global sem precedentes, que tem produzido a multiplicação de eventos climáticos extremos (fortes ondas de calor, invernos rigorosos, tempestades e inundações, incêndios cada vez mais frequentes, furacões e tsunamis), a extensão das áreas de seca no mundo, forte impulso na desertificação, perdas frequentes de colheitas, redução das áreas agricultáveis, e a secagem temporária ou permanente de inúmeros rios.
Está também derretendo fontes de água doce como as geleiras, os glaciares e as calotas polares, produzindo o aumento do nível dos mares. 
Estamos desmatando numa velocidade incrível por toda parte, o que faz prever o desaparecimento total das florestas em alguns países nos próximos anos[1].
Nossa água doce está sendo utilizada em uma quantidade muito acima de sua capacidade de reposição. Além disso, ela está sendo poluída pelo não-saneamento, pelos agrotóxicos, pelos produtos tóxicos das indústrias e da mineração. 
O processo de acidificação dos mares leva cientistas a prever que, possivelmente dentro de 30 a 40 anos, desaparecerão os peixes.
Recifes de corais inteiros já desapareceram ou estão em vias de desaparecer. 

Quais as causas destas mudanças climáticas tão dramáticas, destes desastres ambientais?
Em primeiro lugar, a emissão de dióxido de carbono na atmosfera, numa proporção muito maior nos últimos duzentos anos – e sobretudo nos últimos trinta anos - do que nos setecentos mil anos anteriores. 
Esta emissão é produzida, em primeiro lugar, pela utilização de combustíveis fósseis – petróleo, gás, carvão. Ora, estes, especialmente o petróleo, têm sido a principal fonte de energia dos últimos cem anos. A “civilização do automóvel” tornou a emissão de gases um fenômeno exponencial e a poluição das cidades (e da atmosfera em geral) um fato habitual. 
O gás metano é o um dos principais produtores de efeito estufa. Ora, um dos produtores deste gás é o gado. A extraordinária multiplicação do número de cabeças de gado no mundo – não para atender as necessidades de alimentação - aumentou enormemente a produção de metano. 
Outro produtor de gás metano são os lagos artificiais das usinas hidrelétricas que inundam partes de florestas. A madeira submersa, no correr do tempo, apodrece e produz metano. 
Em segundo lugar, a destruição dos bens naturais é produzida por um modelo de desenvolvimento centrado na produção e no consumo cada vez maior de bens, o modelo produtivista-consumista. 
Como a obtenção de lucros é o principal objetivo dos produtores, interessa-lhes que todo cidadão seja consumidor e que seja consumidor insaciável, de modo a comprar cada vez mais produtos. Esta obsessão pela produção tem como consequência a utilização dos bens naturais renováveis numa velocidade maior do que a sua capacidade de reposição e dos bens não renováveis em direção à sua extinção – o que pode variar é o prazo em que estes bens vão desaparecer.
Além disso, a produção incessante de bens exige uma quantidade de energia sempre maior, tornando também crescente a necessidade de geração de energia. 
Sabe-se que os países desenvolvidos têm apenas 20% da população mundial mas utilizam 80% dos recursos naturais. A Terra é limitada, ela não comporta uma produção sem fim. Se o consumo dos habitantes da China se igualar ao consumo dos habitantes dos Estados Unidos, nem duas Terras serão suficientes. E a China, assim como a maioria dos países, almeja um nível de consumo semelhante.
O que tem levado a desmatar nesta velocidade alucinante? O que tem levado a consumir muito mais água doce do que sua capacidade de reposição? o que tem levado a poluir as águas numa proporção tão grande? 
O modelo econômico dominante não busca apenas atender às necessidades dos cidadãos: ele produz incessantemente uma enorme quantidade de bens e procura convencer, pela propaganda, que são absolutamente indispensáveis para a vida. Ele os produz não para durarem, mas para se tornarem rapidamente obsoletos e precisarem ser repostos[2]. Ele não os produz para poderem ser consertados, mas para serem, ao menor defeito, trocados por um novo. O modo como tais produtos são feitos impede que eles sejam consertados ou mesmo que sejam aperfeiçoados. Este modelo é baseado na descartabilidade dos produtos, com a consequente geração de um lixo cada vez maior e inaproveitado. 
Pois bem, estas são as principais causas dos nossos graves problemas ambientais.

O que o documento-base (“rascunho zero”) produzido pela ONU para a Rio+20 propõe como solução a estes problemas? 
A “economia verde”[3].
 A “economia verde” propõe a redução da utilização do petróleo, do gás e do carvão nos próximos anos? A “economia verde” propõe a progressiva mudança da matriz energética do mundo, para passarmos dos combustíveis fósseis às energias renováveis (solar, eólica, geotérmica, etc.)? 
Não.
Então, a “economia verde” não pretende atacar a principal causa do aquecimento global e, consequentemente, não pretende atacar a principal causa das dramáticas mudanças climáticas que a humanidade está sofrendo. 
A “economia verde” pretende superar o modelo produtivista-consumista, fonte da destruição acelerada dos nossos bens naturais e do aquecimento global? 
Não.
Ao contrário, o “rascunho zero” encoraja fortemente os negócios e a indústria – e, aí dentro, especialmente as grandes empresas - a mostrarem sua liderança na realização da “economia verde”. Não se pede mudança nesta forma de agir da indústria, das grandes empresas, do business as usual
O documento apóia os instrumentos de mercado para reduzir a destruição dos bens naturais. Acredita que a solução virá do aumento do comércio mundial, do livre comércio (sem barreiras) entre os países. Enfatiza a importância do Banco Mundial, do FMI (Fundo Monetário Internacional), da OMC (Organização Mundial do Comércio) para a implementação desta “economia verde”. 
Em suma, o documento pretende que se faça uma “economia verde” sem mexer no essencial da economia dominante, naquele essencial que a torna depredadora da natureza. Quer manter as mesmas instituições – FMI, OMC, BM - que lideraram o processo de neoliberalização das economias dos últimos trinta anos, período no qual, a depredação da natureza foi ainda maior que nos períodos anteriores, graças à “desregulação”, à redução ou anulação dos controles públicos sobre a atuação dos bancos e das empresas. 
A prioridade atribuída ao capital financeiro e seus lucros – e, por isso, ao controle da inflação e dos gastos públicos em políticas sociais – desvalorizou os seres humanos, desprestigiou os trabalhadores, gerou um desemprego massivo e estrutural por toda parte, enfraqueceu os direitos humanos. Hoje, os seres humanos são menos importantes que a dívida pública: para enfrentá-la, tudo é válido, mesmo a destruição das condições de vida digna para as pessoas (como está ocorrendo na Europa atual). Os governos não governam em primeiro lugar para os cidadãos, governam para pagar aos bancos, aos investidores (nacionais e internacionais). 
E a concorrência desenfreada entre as empresas levou a uma destruição mais acelerada dos bens naturais, ao aumento do aquecimento global. 
O que tem feito o “mercado” com relação aos bens naturais até agora? Na sua busca desregulada de lucro – que é o objetivo essencial do mercado -, as empresas exploram a natureza até o seu esgotamento. Esta é a razão pela qual as florestas estão desaparecendo, o petróleo continua sendo usado como principal fonte de energia, a água tem sido esgotada em inúmeras fontes por todo o globo terrestre. As condições de “comércio livre” têm favorecido a destruição da pequena agricultura de países emergentes pelos países desenvolvidos. 
Por que não se substituiu o investimento na produção de automóveis individuais pelo investimento na produção de meios de transporte coletivos (trens, metrôs e outros), muito mais eficientes, muito mais úteis para a população e menos poluentes? Porque as grandes empresas automobilísticas querem continuar a ter lucro e os governos as favorecem. A solução, portanto, não é o “mercado”, é o controle do “mercado”, é a submissão da lógica da busca do lucro individual à lógica da busca do bem público: os governos devem investir recursos públicos nos transportes coletivos, solução primeira para reduzir a utilização dos automóveis individuais, para reduzir o consumo dos recursos usados em sua fabricação, para a redução da utilização de combustíveis fósseis e da poluição atmosférica. 
Por que as florestas são desmatadas? Porque contêm madeira que tem muito valor no “mercado”. E porque devem ceder espaço para o agronegócio (o “mercado”). O que vai impedir o desmatamento? A exigência pública de que as florestas sejam preservadas. Não é o “mercado” que preserva a floresta, ao contrário, é sua afirmação como bem comum, bem de todos, do qual ninguém pode se apropriar privadamente. 
Para dar um exemplo de “precificação” dos bens naturais: o que aconteceu quando os serviços públicos de água em Cochabamba (Bolívia) foram privatizados (ou: passaram a ter “valor de mercado”) no ano 2000? O preço dos serviços de água foram quadruplicados - para dar lucro. Antes, era um serviço para a população: um serviço público não precisa de lucro, basta investir o necessário à sua realização. Já o serviço prestado por uma empresa privada, precisa de lucro para os seus proprietários e, eventualmente, para gastar menos (e ter mais lucro), a empresa pode deixar de fazer os investimentos necessários. A água só voltou ao valor anterior quando o serviço voltou a ser público, isto é, quando saiu do “mercado”. 
A solução para a grave crise ambiental que estamos vivendo não é, pois, a colocação de preço nos bens naturais e nos “serviços ambientais”. É a preservação dos bens e dos processos naturais como bens comuns, como bens de todos, de toda a humanidade. Nós não precisamos de uma “economia verde”: nós precisamos de uma outra economia, nós precisamos de um outro desenvolvimento.
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[1] Segundo Jared Diamond, no Haiti restam florestas em apenas 1% do território. A destruição de florestas pluviais acessíveis em terras baixas fora de parques nacionais já está virtualmente completa na Malásia peninsular e, na taxa atual, se completará em menos de uma década nas ilhas Salomão, Filipinas, Sumatra, Sulawesi (Diamond, Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro, Record, 2009).
[2] Como se explica que, mesmo dispondo de tecnologias e materiais mais aperfeiçoados, muitos bens produzidos hoje durem menos que produtos antigos – como é o caso de vários eletrodomésticos?
[3] O “rascunho zero” foi elaborado a partir de contribuições de países, grupos regionais, organizações internacionais e se baseou fortemente num amplo relatório feito pelo PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) sobre a “economia verde” – de mais de 600 páginas (cf. www.unep.org/greeneconomy ).
Ivo Lesbaupin é secretário-executivo do Iser Assessoria e membro da diretoria executiva da Abong.
Fonte: ISER Assessoria.

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