Neste sábado (22), minha mulher e eu fomos à manifestação
ocorrida em Belo Horizonte na qualidade de médicos. Somos professores e vários
de nossos alunos estavam presentes. Como já havíamos testemunhado a violência
no ato da segunda-feira anterior, fomos preparados para atender possíveis vítimas,
levando na mochila alguns elementos muito básicos para pequenos ferimentos e
limpeza dos olhos irritados por gás.
Por Giovano Iannotti*, especial para o Vermelho
A manifestação foi tranquila durante todo o trajeto. Até
mesmo a intolerância com militantes de partidos de esquerda foi pouco vista.
Uma grande bandeira vermelha era orgulhosamente carregada e, salvo um ou outro,
respeitada. Contudo, o clima começou a piorar quando a manifestação encontrou o
cordão policial. Como tem ocorrido, a maioria aceitou o limite imposto, mas os
provocadores instavam os moderados a enfrentarem a polícia. Parecem colocados
estrategicamente entre o povo, porque se repartem em certo padrão e gritam as
mesmas frases.
Como é sabido, eventualmente o conflito aconteceu. Retiramo-nos
para a pequenina área verde que sobra naquele encontro entre as avenidas Abraão
Caran e Antônio Carlos. E ali ficamos tratando sobretudo intoxicações leves e
ferimentos superficiais causados por estilhaços e balas de borracha. Em um
momento, fui chamado para atender um senhor ferido na cabeça. Fui correndo, mas
ele já passara o cordão de isolamento da polícia. Identifiquei-me como médico
aos policiais do governo de Minas Gerais e disse que poderia atender o senhor
ferido. A resposta foi uma arma apontada contra meu peito. Pedi para falar com
algum oficial, mas a PM recomeçou a atirar. Voltei para nosso pronto-socorro
improvisado. De dentro do campus da UFMG começaram a atirar bombas de gás sobre
nós que atendíamos os feridos e recuamos ainda mais, para o meio da Antônio
Carlos.
Minutos depois, chamaram-nos com urgência informando que
alguém caíra do viaduto José de Alencar. Quando chegamos, um jovem com o rosto
sangrando estava sofrendo uma pequena convulsão. Fizemos a avaliação primária
e, na medida em que surgiam problemas, tratávamos da melhor forma possível.
Aquele paciente precisava de atendimento avançado urgentemente, em um centro de
trauma, mas a polícia não arrefecia. Aproximou-se de mim um sujeito com o rosto
tampado por uma camiseta. Ele descobriu parcialmente a face e me disse no
ouvido que era policial e que pediria que não atirassem para que pudéssemos
evacuar a vítima (penso ter visto esse autodeclarado policial perto de mim,
quando eu tentava falar com um oficial, e depois correndo ao meu lado. Se for a
mesma pessoa, ele era um dos exaltados que instavam à violência). Chegaram
algumas pessoas com camiseta vermelha, na qual se lia “bombeiro civil”. Eles
nos ajudaram a improvisar uma maca com um cavalete da empresa de transportes e
faixas de manifestantes. Algum tempo depois, por coincidência ou não, os tiros
pararam e fomos, com dificuldade, levando a vítima em direção do cordão
policial. Minha mulher ficou na barreira.
Quando passamos a barreira, vi uma ambulância parada a uns
20 metros. Gritei para os que ajudavam para que fôssemos para ela. Todavia,
para meu horror, a polícia não permitiu. Disse que aquela viatura era somente
para policiais feridos. Tentei discutir, mas vi que seria improdutivo. Disse a
um oficial, então, que conseguisse outra. Não tínhamos muito tempo. Colocamos a
vítima no chão, imobilizando sua coluna cervical e iniciei a avaliação
secundária. Na medida do possível, limpamos o rosto ensanguentado do jovem e
realinhamos os membros fraturados. Pedi aos policiais que, pelo menos,
trouxessem equipamentos da ambulância “deles” para imobilização e infusão.
Recusaram-se.
Esperamos um bom tempo até que uma ambulância do resgate do
Corpo de Bombeiros de Minas Gerais chegasse. O veículo praticamente não tinha
nenhum equipamento. Somente a prancha, talas, colar cervical e oxigênio para
ser usado com máscara. “Soro” não havia. Transferimos e imobilizamos o
paciente. Nesse tempo, tentávamos descobrir para onde levar a vítima. Respostas
demoravam a chegar. Pensamos no Mineirão, bem próximo de nós, mas primeiro
disseram que era para torcedores e depois que não dispunha de centro de trauma.
Fomos para o Pronto Socorro de Venda Nova, Risoleta Neves. Lá uma colega
assumiu o tratamento do ferido.
Entrei em contato com minha mulher e ela me disse havia se
juntado a meu irmão, que dois outros haviam caído do viaduto e que havia vários
feridos, mas que eles não estavam conseguindo mais atender.
Mais tarde, quando os reencontrei no metrô de Santa Efigênia
eles me contaram uma história de terror. Depois de me deixar com a primeira
vítima, minha mulher se identificou aos policiais e disse que queria passar
também para me ajudar. A polícia não deixou e ameaçou atirar nela. Como as
agressões reiniciaram logo depois, ela ficou presa entre bombas e pedras, até
que conseguiu fugir e retomar a antiga posição para socorro, no meio da Antônio
Carlos. Foi quando encontrou meu irmão. Logo depois, receberam um chamado,
avisando que outro rapaz havia caído. A situação clínica desse paciente era
muito pior do que a do anterior. Não interessa escandalizar ou ofender com
detalhes médico-cirúrgicos. Relato somente que o quadro que os dois descrevem é
gravíssimo. A vítima não reagia, estava em coma, mas respirava e o coração
batia. Meu irmão, sabendo da primeira experiência, correu para os policiais,
desta vez um outro cordão formado na Antônio Carlos, levantando as mãos,
agitando uma camisa branca e gritando que havia um ferido morrendo. Os
policiais, vários, apontaram-lhe armas e gritaram para que ele fosse embora.
Quando ele tentou avançar um pouco mais, os tiros começaram e ele correu em
direção de minha mulher para ajudá-la.
Ali, ao lado da vítima, perceberam que a polícia atirava
neles. Relatam que já não havia ninguém próximo. Somente a vítima, ele e minha mulher
de jaleco branco. Os tiros e as bombas de efeito moral e de gás vinham com um
único endereço. O deles. Ficaram o quanto aguentaram; mais não puderam fazer.
Desesperados, tiveram que abandonar o rapaz que morria e buscar refúgio.
Depois, tiveram a notícia de que um terceiro homem caíra do
mesmo viaduto. A cavalaria já estava em ação e não havia como atravessar a
avenida para socorrer essa terceira vítima. Quando cheguei em casa, alguns
alunos relataram que socorreram um homem que caíra do viaduto (perece que foram
quatro, no total). Quando a polícia passou, eles conseguiram chegar à vítima e
ficar com ela até que o SAMU chegasse.
Algumas ideias ficam em minha cabeça. Quem já conviveu com
militares sabe na maioria das vezes reconhecer um por sua forma de agir, andar,
cortar o cabelo e de falar. Sem leviandade, acredito que vários dos
provocadores eram militares infiltrados. Vi o homem de rosto coberto dizer ser
policial e que pediria para que os policiais alinhados dessem uma trégua e nos
deixassem passar. Isso aconteceu. Outra imagem simbólica foi ver a tropa de
choque da Polícia Militar de Minas Gerais dentro de uma universidade federal
(deveria ser um território livre e sagrado da paz, da inteligência e da
cultura) fechada para os estudantes. Da universidade vinham bombas que
machucavam a juventude. Já ampliando o horizonte, o Itamaraty em chamas, a
bandeira de São Paulo queimando, o Congresso quebrado, um governador sitiado em
sua casa. Há que se ler nos símbolos e nos fatos. Amplie-se mais esse horizonte.
Não se vê que os métodos são os mesmos usados nas “primaveras” árabes, em
Honduras, no Paraguai, no Equador, na Venezuela e que começa também a ser usado
na Argentina?
Nada há de espontâneo no que está ocorrendo e não é à toa
que os meios de comunicação têm promovido e estimulado a agressividade e a
multiplicidade de slogans e bandeiras. Não é verdade que não haja líderes
nessas manifestações. Os líderes estão nas sombras, colhendo os frutos das
últimas tecnologias. São discretos. Quem sabe o que são o Instituto Millenium,
o instituto Fernando Henrique Cardoso, o Council on Foreign Relations, a
Trilateral Commission, o Carnegie Council? Preparam o Brasil para a guerra
global idealizada pelos think tanks? É essa a forma de chegar aos recursos
naturais do imenso território brasileiro sem a mínima resistência de governos
mais progressistas? Incomoda o acordo com a Rússia para a compra e
desenvolvimento de armas?
Uma certeza: querem atacar a democracia. Em vez de atacar
partido, tome partido. Você está sendo manipulado. Pelo que vi e vivi é certo
que querem jogar um cadáver no colo da presidenta Dilma.
*Professor de Medicina UFMG
Vermelho
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