domingo, 28 de julho de 2013

Na íntegra, o discurso do Papa Francisco aos dirigentes do CELAM

1. Introdução

Agradeço ao Senhor por esta oportunidade de poder falar com vocês, Irmãos Bispos responsáveis do CELAM no quadriênio 2011-2015. Há 57 anos que o CELAM serve as 22 Conferências Episcopais da América Latina e do Caribe, colaborando solidária e subsidiariamente para promover, incentivar e dinamizar a colegialidade episcopal e a comunhão entre as Igrejas da Região e seus Pastores.

Como vocês, também eu sou testemunha do forte impulso do Espírito na V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em Aparecida no mês de maio de 2007, que continua animando os trabalhos do CELAM para a anelada renovação das Igrejas particulares. Em boa parte delas, essa renovação já está em andamento. Gostaria de centrar esta conversação no patrimônio herdado daquele encontro fraterno e que todos batizamos como Missão Continental.

2. Características peculiares de Aparecida

Existem quatro características típicas da referida V Conferência. Constituem como que quatro colunas do desenvolvimento de Aparecida que lhe dão a sua originalidade.

1) Início sem documento

Medelín, Puebla e Santo Domingo começaram os seus trabalhos com um caminho preparatório que culminou em uma espécie de Instrumentum laboris, com base no qual se desenrolou a discussão, a reflexão e a aprovação do documento final. Em vez disso, Aparecida promoveu a participação das Igrejas particulares como caminho de preparação que culminou em um documento de síntese. Este documento, embora tenha sido ponto de referência durante a V Conferência Geral, não foi assumido como documento de partida. O trabalho inicial foi pôr em comum as preocupações dos Pastores perante a mudança de época e a necessidade de recuperar a vida de discípulo e missionário com que Cristo fundou a Igreja.

2) Ambiente de oração com o Povo de Deus

É importante lembrar o ambiente de oração gerado pela partilha diária da Eucaristia e de outros momentos litúrgicos, tendo sido sempre acompanhados pelo Povo de Deus. Além disso, realizando-se os trabalhos na cripta do Santuário, a “música de fundo” que os acompanhava era constituída pelos cânticos e as orações dos fiéis.

3) Documento que se prolonga em compromisso, com a Missão Continental

Neste contexto de oração e vivência de fé, surgiu o desejo de um novo Pentecostes para a Igreja e o compromisso da Missão Continental. Aparecida não termina com um documento, mas prolonga-se na Missão Continental.

4) A presença de Nossa Senhora, Mãe da América

É a primeira Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe que se realiza em um Santuário mariano.

3. Dimensões da Missão Continental

A Missão Continental está projetada em duas dimensões: programática e paradigmática. A missão programática, como o próprio nome indica, consiste na realização de atos de índole missionária. A missão paradigmática, por sua vez, implica colocar em chave missionária a atividade habitual das Igrejas particulares. Em consequência disso, evidentemente, verifica-se toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais. A “mudança de estruturas” (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática, mas é consequência da dinâmica da missão. O que derruba as estruturas caducas, o que leva a mudar os corações dos cristãos é justamente a missionariedade. Daqui a importância da missão paradigmática.

A Missão Continental, tanto programática como paradigmática, exige gerar a consciência de uma Igreja que se organiza para servir a todos os batizados e homens de boa vontade. O discípulo de Cristo não é uma pessoa isolada em uma espiritualidade intimista, mas uma pessoa em comunidade para se dar aos outros. Portanto, a Missão Continental implica pertença eclesial.

Uma posição como esta, que começa pelo discipulado missionário e implica entender a identidade do cristão como pertença eclesial, pede que explicitemos quais são os desafios vigentes da missionariedade discipular. Me limito a assinalar dois: a renovação interna da Igreja e o diálogo com o mundo atual.

Renovação interna da Igreja

Aparecida propôs como necessária a Conversão Pastoral. Esta conversão implica acreditar na Boa Nova, acreditar em Jesus Cristo portador do Reino de Deus, em sua irrupção no mundo, em sua presença vitoriosa sobre o mal; acreditar na assistência e guia do Espírito Santo; acreditar na Igreja, Corpo de Cristo e prolongamento do dinamismo da Encarnação.

Neste sentido, é necessário que nos interroguemos, como Pastores, sobre o andamento das Igrejas a que presidimos. Estas perguntas servem de guia para examinar o estado das dioceses quanto à adoção do espírito de Aparecida, e são perguntas que é conveniente pôr-nos, muitas vezes, como exame de consciência.

1. Procuramos que o nosso trabalho e o de nossos presbíteros seja mais pastoral que administrativo? Quem é o principal beneficiário do trabalho eclesial, a Igreja como organização ou o Povo de Deus na sua totalidade?

2. Superamos a tentação de tratar de forma reativa os problemas complexos que surgem? Criamos um hábito proativo? Promovemos espaços e ocasiões para manifestar a misericórdia de Deus? Estamos conscientes da responsabilidade de repensar as atitudes pastorais e o funcionamento das estruturas eclesiais, buscando o bem dos fiéis e da sociedade?

3. Na prática, fazemos os fiéis leigos participantes da Missão? Oferecemos a Palavra de Deus e os Sacramentos com consciência e convicção claras de que o Espírito se manifesta neles?

4. Temos como critério habitual o discernimento pastoral, servindo-nos dos Conselhos Diocesanos? Tanto estes como os Conselhos paroquiais de Pastoral e de Assuntos Econômicos são espaços reais para a participação laical na consulta, organização e planejamento pastoral? O bom funcionamento dos Conselhos é determinante. Acho que estamos muito atrasados nisso.

5. Nós, Pastores Bispos e Presbíteros, temos consciência e convicção da missão dos fiéis e lhes damos a liberdade para irem discernindo, de acordo com o seu processo de discípulos, a missão que o Senhor lhes confia? Apoiamo-los e acompanhamos, superando qualquer tentação de manipulação ou indevida submissão? Estamos sempre abertos para nos deixarmos interpelar pela busca do bem da Igreja e da sua Missão no mundo?

6. Os agentes de pastoral e os fiéis em geral sentem-se parte da Igreja, identificam-se com ela e aproximam-na dos batizados indiferentes e afastados?

Como se pode ver, aqui estão em jogo atitudes. A Conversão Pastoral diz respeito, principalmente, às atitudes e a uma reforma de vida. Uma mudança de atitudes é necessariamente dinâmica: “entra em processo” e só é possível moderá-lo acompanhando-o e discernindo-o. É importante ter sempre presente que a bússola, para não se perder nesse caminho, é a identidade católica concebida como pertença eclesial.

Diálogo com o mundo atual

Faz-nos bem lembrar estas palavras do Concílio Vaticano II: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e atribulados, são também alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo (cf. GS, 1). Aqui reside o fundamento do diálogo com o mundo atual.

A resposta às questões existenciais do homem de hoje, especialmente das novas gerações, atendendo à sua linguagem, entranha uma mudança fecunda que devemos realizar com a ajuda do Evangelho, do Magistério e da Doutrina Social da Igreja. Os cenários e areópagos são os mais variados. Por exemplo, em uma mesma cidade, existem vários imaginários coletivos que configuram “diferentes cidades”. Se continuarmos apenas com os parâmetros da “cultura de sempre”, fundamentalmente uma cultura de base rural, o resultado acabará anulando a força do Espírito Santo. Deus está em toda a parte: há que saber descobri-lo para poder anunciá-lo no idioma dessa cultura; e cada realidade, cada idioma tem um ritmo diferente.

4. Algumas tentações contra o discipulado missionário

A opção pela missionariedade do discípulo sofrerá tentações. É importante saber por onde entra o espírito mau, para nos ajudar no discernimento. Não se trata de sair à caça de demônios, mas simplesmente de lucidez e prudência evangélicas. Limito-me a mencionar algumas atitudes que configuram uma Igreja “tentada”. Trata-se de conhecer determinadas propostas atuais que podem mimetizar-se em a dinâmica do discipulado missionário e deter, até fazê-lo fracassar, o processo de Conversão Pastoral.

1. A ideologização da mensagem evangélica. É uma tentação que se verificou na Igreja desde o início: procurar uma hermenêutica de interpretação evangélica fora da própria mensagem do Evangelho e fora da Igreja. Um exemplo: a dado momento, Aparecida sofreu essa tentação sob a forma de assepsia. Foi usado, e está bem, o método de “ver, julgar, agir” (cf. n.º 19). A tentação se encontraria em optar por um “ver” totalmente asséptico, um “ver” neutro, o que não é viável. O ver está sempre condicionado pelo olhar. Não há uma hermenêutica asséptica. Então a pergunta era: Com que olhar vamos ver a realidade? Aparecida respondeu: Com o olhar de discípulo. Assim se entendem os números 20 a 32. Existem outras maneiras de ideologização da mensagem e, atualmente, aparecem na América Latina e no Caribe propostas desta índole. Menciono apenas algumas:

a) O reducionismo socializante. É a ideologização mais fácil de descobrir. Em alguns momentos, foi muito forte. Trata-se de uma pretensão interpretativa com base em uma hermenêutica de acordo com as ciências sociais. Engloba os campos mais variados, desde o liberalismo de mercado até à categorização marxista.

b) A ideologização psicológica. Trata-se de uma hermenêutica elitista que, em última análise, reduz o “encontro com Jesus Cristo” e seu sucessivo desenvolvimento a uma dinâmica de autoconhecimento. Costuma verificar-se principalmente em cursos de espiritualidade, retiros espirituais, etc. Acaba por resultar numa posição imanente auto-referencial. Não tem sabor de transcendência, nem portanto de missionariedade.

c) A proposta gnóstica. Muito ligada à tentação anterior. Costuma ocorrer em grupos de elites com uma proposta de espiritualidade superior, bastante desencarnada, que acaba por desembocar em posições pastorais de “quaestiones disputatae”. Foi o primeiro desvio da comunidade primitiva e reaparece, ao longo da história da Igreja, em edições corrigidas e renovadas. Vulgarmente são denominados “católicos iluminados” (por serem atualmente herdeiros do Iluminismo).

d) A proposta pelagiana. Aparece fundamentalmente sob a forma de restauracionismo. Perante os males da Igreja, busca-se uma solução apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas que, mesmo culturalmente, não possuem capacidade significativa. Na América Latina, costuma verificar-se em pequenos grupos, em algumas novas Congregações Religiosas, em tendências para a “segurança” doutrinal ou disciplinar. Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro: regride. Procura “recuperar” o passado perdido.

2. O funcionalismo. A sua ação na Igreja é paralisante. Mais do que com a rota, se entusiasma com o “roteiro”. A concepção funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma ONG. O que vale é o resultado palpável e as estatísticas. A partir disso, chega-se a todas as modalidades empresariais de Igreja. Constitui uma espécie de “teologia da prosperidade” no organograma da pastoral.

3. O clericalismo é também uma tentação muito atual na América Latina. Curiosamente, na maioria dos casos, trata-se de uma cumplicidade viciosa: o sacerdote clericaliza e o leigo lhe pede por favor que o clericalize, porque, no fundo, lhe resulta mais cômodo. O fenômeno do clericalismo explica, em grande parte, a falta de maturidade adulta e de liberdade cristã em boa parte do laicato da América Latina: ou não cresce (a maioria), ou se abriga sob coberturas de ideologizações como as indicadas, ou ainda em pertenças parciais e limitadas. Em nossas terras, existe uma forma de liberdade laical através de experiências de povo: o católico como povo. Aqui vê-se uma maior autonomia, geralmente sadia, que se expressa fundamentalmente na piedade popular. O capítulo de Aparecida sobre a piedade popular descreve, em profundidade, essa dimensão. A proposta dos grupos bíblicos, das comunidades eclesiais de base e dos Conselhos pastorais está na linha de superação do clericalismo e de um crescimento da responsabilidade laical.

Poderíamos continuar descrevendo outras tentações contra o discipulado missionário, mas acho que estas são as mais importantes e com maior força neste momento da América Latina e do Caribe.

5. Algumas orientações eclesiológicas

1. O discipulado-missionário que Aparecida propôs às Igrejas da América Latina e do Caribe é o caminho que Deus quer para “hoje”. Toda a projeção utópica (para o futuro) ou restauracionista (para o passado) não é do espírito bom. Deus é real e se manifesta no “hoje”. A sua presença, no passado, se nos oferece como “memória” da saga de salvação realizada quer em seu povo quer em cada um de nós; no futuro, se nos oferece como “promessa” e esperança. No passado, Deus esteve lá e deixou sua marca: a memória nos ajuda encontrá-lo; no futuro, é apenas promessa… e não está nos mil e um “futuríveis”. O “hoje” é o que mais se parece com a eternidade; mais ainda: o “hoje” é uma centelha de eternidade. No “hoje”, se joga a vida eterna.

O discipulado missionário é vocação: chamada e convite. Acontece em um “hoje”, mas “em tensão”. Não existe o discipulado missionário estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo; a sua imanência está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão. Não admite a auto-referencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio.

Por isso, gosto de dizer que a posição do discípulo missionário não é uma posição de centro, mas de periferias: vive em tensão para as periferias… incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo. No anúncio evangélico, falar de “periferias existenciais” descentraliza e, habitualmente, temos medo de sair do centro. O discípulo-missionário é um descentrado: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais.

2. A Igreja é instituição, mas, quando se erige em “centro”, se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG. Então, a Igreja pretende ter luz própria e deixa de ser aquele “mysterium lunae” de que nos falavam os Santos Padres. Torna-se cada vez mais auto-referencial, e se enfraquece a sua necessidade de ser missionária. De “Instituição” se transforma em “Obra”. Deixa de ser Esposa, para acabar sendo Administradora; de Servidora se transforma em “Controladora”. Aparecida quer uma Igreja Esposa, Mãe, Servidora, facilitadora da fé e não controladora da fé.

3. Em Aparecida, verificam-se de forma relevante duas categorias pastorais, que surgem da própria originalidade do Evangelho e nos podem também servir de orientação para avaliar o modo como vivemos eclesialmente o discipulado missionário: a proximidade e o encontro. Nenhuma das duas é nova, antes configuram a maneira como Deus se revelou na história. É o “Deus próximo” do seu povo, proximidade que chega ao máximo quando Ele encarna. É o Deus que sai ao encontro do seu povo. Na América Latina e no Caribe, existem pastorais “distantes”, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais… obviamente sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a “revolução da ternura”, que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais posicionadas com tal dose de distância que são incapazes de conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Este tipo de pastoral pode, no máximo, prometer uma dimensão de proselitismo, mas nunca chegam a conseguir inserção nem pertença eclesial. A proximidade cria comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro. Uma pedra de toque para aferir a proximidade e a capacidade de encontro de uma pastoral é a homilia. Como são as nossas homilias? Estão próximas do exemplo de Nosso Senhor, que “falava como quem tem autoridade”, ou são meramente prescritivas, distantes, abstratas?

4. Quem guia a pastoral, a Missão Continental (seja programática seja paradigmática), é o Bispo. Ele deve guiar, que não é o mesmo que comandar. Além de assinalar as grandes figuras do episcopado latino-americano que todos nós conhecemos, gostaria de acrescentar aqui algumas linhas sobre o perfil do Bispo, que já disse aos Núncios na reunião que tivemos em Roma. Os Bispos devem ser Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham “psicologia de príncipes”. Homens que não sejam ambiciosos e que sejam esposos de uma Igreja sem viver na expectativa de outra. Homens capazes de vigiar sobre o rebanho que lhes foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido: vigiar sobre o seu povo, atento a eventuais perigos que o ameacem, mas sobretudo para cuidar da esperança: que haja sol e luz nos corações. Homens capazes de sustentar com amor e paciência os passos de Deus em seu povo. E o lugar onde o Bispo pode estar com o seu povo é triplo: ou à frente para indicar o caminho, ou no meio para mantê-lo unido e neutralizar as debandadas, ou então atrás para evitar que alguém se desgarre mas também, e fundamentalmente, porque o próprio rebanho tem o seu olfato para encontrar novos caminhos.

Não quero juntar mais detalhes sobre a pessoa do Bispo, mas simplesmente acrescentar, incluindo-me a mim mesmo nesta afirmação, que estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica. Convém que nos ajudemos um pouco mais a dar os passos que o Senhor quer que cumpramos neste “hoje” da América Latina e do Caribe. E seria bom começar por aqui.

Agradeço-lhes a paciência de me ouvirem. Desculpem a desordem do discurso e lhes peço, por favor, para tomarmos a sério a nossa vocação de servidores do povo santo e fiel de Deus, porque é nisso que se exerce e mostra a autoridade: na capacidade de serviço. Muito obrigado!

sábado, 27 de julho de 2013

Homilia do Papa na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro

Amados Irmãos em Cristo,
Vendo esta catedral lotada com Bispos, sacerdotes, seminaristas, religiosos e religiosas vindos do mundo inteiro, penso nas palavras do Salmo da Missa de hoje: "Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor" (Sl 66).
Sim, estamos aqui reunidos para glorificar o Senhor; e o fazemos reafirmando a nossa vontade de sermos seus instrumentos, para que não somente algumas nações mas todas glorifiquem o Senhor. Com a mesma paresia --coragem, ousadia-- de Paulo e Barnabé, anunciemos o Evangelho aos nossos jovens para que encontrem Cristo, luz para o caminho, e se tornem construtores de um mundo mais fraterno. Neste sentido, queria refletir com vocês sobre três aspectos da nossa vocação: chamados por Deus; chamados para anunciar o Evangelho; chamados a promover a cultura do encontro.
1. Chamados por Deus. É importante reavivar em nós esta realidade que, frequentemente, damos por descontada em meio a tantas atividades do dia a dia: "Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi", diz-nos Jesus (Jo 15,16).Significa retornar à fonte da nossa chamada.
No início de nosso caminho vocacional, há uma eleição divina. Fomos chamados por Deus, e chamados para permanecer com Jesus (cf. Mc 3, 14), unidos a Ele de um modo tão profundo que nos permite dizer com São Paulo: "Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim" (Gal 2, 20). Este viver em Cristo configura realmente tudo aquilo que somos e fazemos.
E esta "vida em Cristo" é justamente o que garante a nossa eficácia apostólica, a fecundidade do nosso serviço: 'Eu vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça" (Jo 15,16). Não é a criatividade pastoral, não são as reuniões ou planejamentos que garantem os frutos, mas ser fiel a Jesus, que nos diz com insistência: "Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós" (Jo 15, 4).
E nós sabemos bem o que isso significa: Contemplá-lo, adorá-lo e abraçá-lo, particularmente através da nossa fidelidade à vida de oração, do nosso encontro diário com Ele presente na Eucaristia e nas pessoas mais necessitadas. O "permanecer" com Cristo não é se isolar, mas é um permanecer para ir ao encontro dos demais. Vem-me à cabeça umas palavras da Bem-aventurada Madre Teresa de Calcutá: "Devemos estar muito orgulhosas da nossa vocação, que nos dá a oportunidade de servir Cristo nos pobres. É nas favelas, nos 'cantegriles' nas Villas miseria, que nós devemos ir procurar e servir a Cristo. Devemos ir até eles como o sacerdote se aproxima do altar, cheio de alegria" (Mother Instructions, I, p.80). Jesus, Bom Pastor, é o nosso verdadeiro tesouro; procuremos fixar sempre mais n'Ele o nosso coração (cf. Lc 12, 34).
2. Chamados para anunciar o Evangelho. Queridos bispos e sacerdotes, muitos de vocês, senão todos, vieram acompanhar seus jovens à Jornada Mundial. Eles também ouviram as palavras do mandato de Jesus: "Ide e fazei discípulos entre todas as nações' (cf. Mt 28,19). É nosso compromisso ajudá-los a fazer arder, no seu coração, o desejo de serem discípulos missionários de Jesus. Certamente muitos, diante desse convite, poderiam sentir-se um pouco atemorizados, imaginando que ser missionário significa deixar necessariamente o País, a família e os amigos.
Recordo o meu sonho da juventude: partir missionário para o longínquo Japão. Mas Deus me mostrou que o meu território de missão estava muito mais perto: na minha pátria. Ajudemos os jovens a perceberem que ser discípulo missionário é uma consequência de ser batizado, é parte essencial do ser cristão, e que o primeiro lugar onde evangelizar é a própria casa, o ambiente de estudo ou de trabalho, a família e os amigos. Não poupemos forças na formação da juventude! São Paulo usa uma bela expressão, que se tornou realidade na sua vida, dirigindo-se aos seus cristãos: "Meus filhos, por vós sinto de novo as dores do parto até Cristo ser formado em vós" (Gal 4, 19).
Também nós façamos que isso se torne realidade no nosso ministério! Ajudemos os nossos jovens a descobrir a coragem e a alegria da fé, a alegria de ser pessoalmente amados por Deus, que deu o seu Filho Jesus para nossa salvação. Eduquemo-los para a missão, para sair, para partir. Jesus fez assim com os seus discípulos: não os manteve colados a si, como uma galinha com os seus pintinhos; Ele os enviou! Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades, quando há tanta gente esperando o Evangelho! Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher, mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar.
Decididamente pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são convidados para a Mesa do Senhor.
3. Chamados a promover a cultura do encontro. Em muitos ambientes, infelizmente, ganhou espaço a cultura da exclusão, a "cultura do descartável". Não há lugar para o idoso, nem para o filho indesejado; não há tempo para se deter com o pobre caído à margem da estrada. Às vezes parece que, para alguns, as relações humanas sejam regidas por dois "dogmas" modernos: eficiência e pragmatismo. Queridos Bispos, sacerdotes, religiosos e também vocês, seminaristas, que se preparam para o ministério, tenham a coragem de ir contra a corrente. Não renunciemos a este dom de Deus: a única família dos seus filhos. O encontro e o acolhimento de todos, a solidariedade e a fraternidade são os elementos que tornam a nossa civilização verdadeiramente humana.
Temos de ser servidores da comunhão e da cultura do encontro. Permitam-me dizer: deveríamos ser quase obsessivos neste aspecto! Não queremos ser presunçosos, impondo as "nossas verdades". O que nos guia é a certeza humilde e feliz de quem foi encontrado, alcançado e transformado pela Verdade que é Cristo, e não pode deixar de anunciá-la (cf. Lc 24, 13-35).
Queridos irmãos e irmãs, fomos chamados por Deus, chamados para anunciar o Evangelho e promover corajosamente a cultura do encontro. A Virgem Maria seja o nosso modelo. Na sua vida, Ela deu "exemplo daquele afeto maternal de que devem estar animados todos quantos cooperam na missão apostólica que a Igreja, tem de regenerar os homens" (Conc. Ecum. Vat. II, Cost. dogm. Lumen gentium, 65). Seja Ela a Estrela que guia com segurança nossos passos ao encontro do Senhor.
Amém.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

JMJ: Na integra o discurso do Papa Francisco na Via Sacra

“Queridos jovens,
Viemos hoje acompanhar Jesus no seu caminho de dor e de amor, o caminho da cruz, que é um dos momentos fortes da Jornada Mundial da Juventude. No final do Ano Santo da Redenção, o bem-aventurado João Paulo II quis confiá-la a vocês, jovens, dizendo-lhes: “Levai-a pelo mundo, como sinal do amor de Jesus pela humanidade e anunciai a todos que só em Cristo morto e ressuscitado há salvação e redenção” (Palavras aos jovens [22 de abril de 1984]: Insegnamenti VII,1 [1984], 1105). A partir de então a cruz percorreu todos os continentes e atravessou os mais variados mundos da existência humana, ficando quase que impregnada com as situações de vida de tantos jovens que a viram e carregaram. Ninguém pode tocar a cruz de Jesus sem deixar algo de si mesmo nela e sem trazer algo da cruz de Jesus para sua própria vida. Nesta tarde, acompanhando o Senhor, queria que ressoassem três perguntas nos seus corações: O que vocês terão deixado na cruz, queridos jovens brasileiros, nestes dois anos em que ela atravessou seu imenso país? E o que terá deixado a cruz de Jesus em cada um de vocês? E, finalmente, o que esta cruz ensina para a nossa vida?

Uma antiga tradição da Igreja de Roma conta que o apóstolo Pedro, saindo da cidade para fugir da perseguição do Imperador Nero, viu que Jesus caminhava na direção oposta e, admirado, lhe perguntou: “Para onde vais, Senhor?”. E a resposta de Jesus foi: “Vou a Roma para ser crucificado outra vez”. Naquele momento, Pedro entendeu que devia seguir o Senhor com coragem até o fim, mas entendeu sobretudo que nunca estava sozinho no caminho; com ele, sempre estava aquele Jesus que o amara até o ponto de morrer na cruz. Pois bem, Jesus com a sua cruz atravessa os nossos caminhos para carregar os nossos medos, os nossos problemas, os nossos sofrimentos, mesmo os mais profundos. Com a cruz, Jesus se une ao silêncio das vítimas da violência, que já não podem clamar, sobretudo os inocentes e indefesos; nela Jesus se une às famílias que passam por dificuldades, que choram a perda de seus filhos, ou que sofrem vendo-os presas de paraísos artificiais como a droga; nela Jesus se une a todas as pessoas que passam fome, num mundo que todos os dias joga fora toneladas de comida; nela Jesus se une a quem é perseguido pela religião, pelas ideias, ou simplesmente pela cor da pele; nela Jesus se une a tantos jovens que perderam a confiança nas instituições políticas, por verem egoísmo e corrupção, ou que perderam a fé na Igreja, e até mesmo em Deus, pela incoerência de cristãos e de ministros do Evangelho. Na cruz de Cristo, está o sofrimento, o pecado do homem, o nosso também, e Ele acolhe tudo com seus braços abertos, carrega nas suas costas as nossas cruzes e nos diz: coragem! Você não está sozinho a levá-la! Eu a levo com você. Eu venci a morte e vim para lhe dar esperança, dar-lhe vida (cf. Jo 3,16).

E assim podemos responder à segunda pregunta: o que foi que a cruz deixou naqueles que a viram, naqueles que a tocaram? O que deixa em cada um de nós? Deixa um bem que ninguém mais pode nos dar: a certeza do amor inabalável de Deus por nós. Um amor tão grande que entra no nosso pecado e o perdoa, entra no nosso sofrimento e nos dá a força para poder levá-lo, entra também na morte para derrotá-la e nos salvar. Na cruz de Cristo, está todo o amor de Deus, a sua imensa misericórdia. E este é um amor em que podemos confiar, em que podemos crer. Queridos jovens, confiemos em Jesus, abandonemo-nos totalmente a Ele (cf. Carta Encíclica Lumen fidei, 16)! Só em Cristo morto e ressuscitado encontramos salvação e redenção. Com Ele, o mal, o sofrimento e a morte não têm a última palavra, porque Ele nos dá a esperança e a vida: transformou a cruz, de instrumento de ódio, de derrota, de morte, em sinal de amor, de vitória e de vida.

O primeiro nome dado ao Brasil foi justamente o de “Terra de Santa Cruz”. A cruz de Cristo foi plantada não só na praia, há mais de cinco séculos, mas também na história, no coração e na vida do povo brasileiro e não só: o Cristo sofredor, sentimo-lo próximo, como um de nós que compartilha o nosso caminho até o final. Não há cruz, pequena ou grande, da nossa vida que o Senhor não venha compartilhar conosco.

Mas a cruz de Cristo também nos convida a deixar-nos contagiar por este amor; ensina-nos, pois, a olhar sempre para o outro com misericórdia e amor, sobretudo quem sofre, quem tem necessidade de ajuda, quem espera uma palavra, um gesto; ensina-nos a sair de nós mesmos para ir ao encontro destas pessoas e lhes estender a mão. Tantos rostos acompanharam Jesus no seu caminho até a cruz: Pilatos, o Cireneu, Maria, as mulheres… Também nós diante dos demais podemos ser como Pilatos que não teve a coragem de ir contra a corrente para salvar a vida de Jesus, lavando-se as mãos. Queridos amigos, a cruz de Cristo nos ensina a ser como o Cireneu, que ajuda Jesus levar aquele madeiro pesado, como Maria e as outras mulheres, que não tiveram medo de acompanhar Jesus até o final, com amor, com ternura. E você como é? Como Pilatos, como o Cireneu, como Maria?

Queridos jovens, levamos as nossas alegrias, os nossos sofrimentos, os nossos fracassos para a cruz de Cristo; encontraremos um coração aberto que nos compreende, perdoa, ama e pede para levar este mesmo amor para a nossa vida, para amar cada irmão e irmã com este mesmo amor.
Assim seja!”.

Legado da visita é a Igreja fora da sacristia

Em viagem pelo Brasil, o papa Francisco tem reforçado pelo menos três marcas de seu pontificado: a defesa por uma igreja missionária, mais perto do povo e menos fechada na sacristia; o combate à pobreza e à desigualdade social; e a afirmação de que o exemplo fala mais do que as palavras. Essa é a análise feita pelo padre e teólogo José Oscar Beozzo, doutor em história social e coordenador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular.
A reportagem é de Cristiane Agostine e publicada pelo jornal Valor, 26-07-2013.

Menino abraça o Papa durante visita a comunidade  em Manguinhos (Foto: Reprodução GloboNews)
Autor de livros e artigos sobre a história da igreja no Brasil e na América Latina, o padre Beozzo disse que o papaFrancisco tem mostrado ao longo de seus quatro meses de pontificado e em sua passagem pelo Rio de Janeiro e São Paulo que não quer uma igreja "burguesa". "O papa tem dito que a igreja tem que sair da sacristia e ir para a periferia, para onde o povo está precisando. Não quer uma igreja burguesa, acomodada. É um ponto fundamental", disse.
A defesa do trabalho pastoral difere o papa Francisco de seu antecessor Bento XVI, que dava ênfase em seus discursos à doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana, afirma o padre Beozzo.
Ao falar sobre os pronunciamentos feitos pelo papa no Brasil, durante a semana da Jornada Mundial da Juventude, o teólogo destacou as críticas do pontífice à pobreza e sua defesa pela superação da desigualdade social. Um exemplo é a declaração feitas ontem pelo papa na favela de Varginha no Complexo de Manguinhos, no Rio, quando fez um apelo às autoridades públicas para que trabalhem em favor da justiça social e combater a fome e a miséria. "Nenhum esforço de 'pacificação' será duradouro, não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma", disse o papa. Nesse discurso, o religioso afirmou que a igreja é "advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas".
Na análise de Beozzo, não teria como ser diferente a declaração rigorosa do papa contra as drogas, quando condenou propostas de legalização em debate na América Latina, na noite de quarta-feira, no Rio. "Não vejo o papa como conservador. Ele é realista. Não sei se alguém pode falar que o tráfico é uma boa coisa, que não faz a desgraça das comunidades", disse.
No Rio, o papa falou sobre as "chagas do tráfico", disse que os traficantes são "mercadores da morte" e afirmou que "não é deixando livre o uso das drogas que se conseguirá reduzir a difusão e a influência da dependência química". Segundo o papa, é preciso enfrentar os problemas que estão na raiz do uso das drogas, educando os jovens com valores.
Para o padre Beozzo, o papa não entrou na discussão sobre a descriminalização das drogas. "O que podia esperar? Falar tudo bem com o tráfico? Tudo bem com o uso generalizado da droga? Ele não entrou na questão de como se deve fazer isso, se criminaliza o tráfico e não o usuário, que é uma vítima. Não tem que [o usuário] levar para a cadeia, tem que dar tratamento", disse.
O terceiro ponto destacado pelo padre Beozzo sobre o papa é a pregação por meio das ações. "O papa fala muito mais por seus gestos do que pelos testemunhos formais", afirmou. "Ele insiste muito na credibilidade entre o discurso e o que você faz, no ato de dar o exemplo", afirmou.
Além de o papa evitar a ostentação e o luxo em sua passagem pelo Brasil, o padre Beozzo citou também a discussão que houve entre a equipe do pontífice e o governo brasileiro em torno da segurança. "O papa queria estar perto do povo, andar em carro aberto e não se submeteu à proposta de segurança oferecida pelo governo, que queria evitar o contato com a população", disse.
O padre Beozzo lembrou ainda da viagem do papa à Lampedusa, ilha italiana próxima à África, antes da viagem ao Brasil, quando denunciou a xenofobia e jogou uma coroa de flores no mar em lembrança aos mais de 30 mil imigrantes que tentavam entrar na Europa mas que morreram durante a viagem. "Ele não foi com nenhum cardeal. Foi apenas com dois religiosos para prestar uma homenagem aos mortos", disse.
FONTE: IHU

Citrosuco é autuada por empregar 26 em trabalho escravo e corre o risco de perder direitos econômicos

Flagrante de escravidão de uma das três maiores indústrias de suco de laranja no Brasil pode levar à cassação do registro de ICMS. Empresa já foi indiciada por prática lesiva à economia e condenada por problemas de terceirização trabalhista
Por Guilherme Zocchio - REPORTER BRASIL
“Confiança, franqueza e amizade como base das relações internas e externas” não pareciam ser os valores que havia no vínculo entre a Citrosuco e um grupo de 26 dos seus empregados da colheita de laranja, resgatados de regime de trabalho análogo ao de escravo no último 2 de julho. A frase que abre a reportagem, slogan na página da internet da companhia, destoa da situação verificada pela vistoria realizada por dois auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e um procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) em dois laranjais da empresa, no interior de São Paulo. O contingente foi encontrado e libertado após uma denúncia recebida pelo MPT.
A fiscalização constatou que as 26 vítimas sofriam restrições à liberdade de ir e vir e estavam sujeitas a condições degradantes de trabalho e vida nas propriedades Fazenda Água Sumida, em Botucatu, e Fazenda Graminha, em São Manoel, cidades na região centro-sul paulista. A Citrosuco foi multada pelo MTE e ainda pode responder a processo na Justiça, além de sofrer outras sanções administrativas, como a entrada na “lista  suja” do trabalho escravo ou a perda dos direitos econômicos. Ao todo foram lavrados 25 autos de infração contra a empresa.
Interior do alojamento onde residiam os trabalhadores resgatados (Fotos: PRT-15)
Interior do alojamento onde residiam os trabalhadores resgatados (Fotos: PRT-15)
O MPT sinaliza que, pelo flagrante de escravidão, deve entrar com uma ação civil pública para processar a companhia na Justiça do Trabalho. Caso condenada em segunda instância, a Citrosuco pode ter o registro no Imposto de Circulação de Bens de Mercadoria e Serviço (ICMS) cassado junto à Secretaria Estadual da Fazenda de São Paulo, com base na lei nº 14.946/2013, conhecida como “lei paulista contra a escravidão”. “Uma empresa desse porte não pode, de forma alguma, fazer esse tipo de contratação [em regime de trabalho escravo]”, justifica o procurador do MPT presente na fiscalização, Fernando Maturana.
Na prática, a lei paulista prevê que pessoas físicas ou jurídicas condenadas pelo uso de mão de obra escrava fiquem impedidas de exercer o mesmo ramo de atividade econômica por um período de dez anos. A empresa pode tornar-se a primeira a ser enquadrada na nova legislação do Estado. Esta não é primeira vez, contudo, que a gigante produtora de suco de laranja enfrenta problemas com o Poder Judiciário ou ações administrativas por parte do Poder Executivo. Em posicionamento à Repórter Brasil, a Citrosuco afirma que “em relação à fiscalização realizada pela Delegacia Regional do Trabalho a empresa está avaliando as medidas cabíveis a serem tomadas”.
Mercado concentradoA empresa é a divisão responsável pela fabricação de laranja e derivados do Grupo Fischer, um dos maiores conglomerados do setor de frutas e sucos cítricos que atuam no mercado brasileiro. A corporação ainda se divide entre a Fischer S/A e a Companhia Brasileira de Offshore (CBO), ramo de navegação e apoio a plataformas marítimas. Juntamente de Cutrale e Louis Dreyfus, a Citrosuco suco integra um restrito coletivo de apenas três grandes produtoras de suco de laranja no Brasil.
Homem libertado mostra cobertor que utilizava para dormir
Homem libertado mostra cobertor que utilizava no descanso
Em 2006, o trio foi alvo da “Operação Fanta”, deflagrada pelo Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE-SP) e a Polícia Federal (PF), para investigar o crime de formação de cartel. No Conselho de Administração Econômica (Cade), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça que tem por objetivo zelar pela livre concorrência, o grupo de empresas também responde a processo administrativo por prática lesiva à ordem econômica. Ainda durante o começo deste ano, as três companhias também foram condenadas a pagar, juntas, R$ 400 milhões pela Justiça do Trabalho, devido a problemas de terceirização de mão de obra no setor.
Segundo informações do próprio Grupo Fischer, a Citrosuco exporta mercadorias para mais de 90 países. Em 2011, além disso, a empresa anunciou, com outra então gigante do setor, a Citrovita, que pertencia ao Grupo Votorantin, a intenção de se fundir e formar uma única empresa. A fusão, aprovada pelo Cade no final daquele ano, desde que cumpridas certas exigências, reduziu o número de indústrias atuando no setor, então em quatro, para apenas três.
Flagrante de escravidão
Segundo Renan Barbosa Amorim, auditor fiscal do MTE que coordenou a fiscalização nos dois laranjais da Citrosuco, o grupo de 26 trabalhadores resgatados da escravidão havia sido aliciado no município de Ipirá, interior da Bahia, por uma funcionária administrativa da companhia, responsável pela formação das turmas de trabalho.  Também participou da ação o auditor Fernando da Silva. Saído do sertão baiano no último 2 de maio, os migrantes chegaram a São Paulo com a promessa de receberem bons salários, um alojamento custeado pelo empregador, para residirem durante o ofício temporário, e condições dignas de serviço.
No período em que permaneceram no Estado, as vítimas, porém, acumularam dívidas, receberam uma quantia abaixo do piso mínimo paulista, estiveram impedidas de romper o vínculo trabalhista e sobreviveram em uma casa sem quaisquer condições de habitabilidade. “A fiscalização entendeu que faz parte do procedimento padrão da empresa o uso de um preposto dela para trazer pessoas de fora e formar turmas de trabalho na colheita da laranja”, explica à Repórter Brasil o fiscal Renan Amorim. Conforme o MTE, todos os 26 resgatados eram registrados pela Citrosuco. Após acordo firmado entre empresa e MPT, em 11 de julho, os trabalhadores retornaram ao município de origem, com o recebimento das verbas rescisórias e o custo da viagem pago pelo empregador.
Cama no alojamento do grupo de 26 libertados
Cama no alojamento do grupo de 26 libertados
Para o procurador do MPT Fernando Maturana, a Citrosuco fez a receptação daqueles trabalhadores de modo a tirar “vantagem econômica”. A conduta da empresa pode ser interpretada através da “teoria da cegueira deliberada”, quando um acusado de certo crime nega participação por não estar diretamente envolvido, mas, ainda assim, tira daquela prática algum tipo de benefício. “A Citrosuco precisa daquela mão de obra mais barata para tirar vantagem econômica e fecha os olhos para a forma como é feito o aliciamento. Chamou muito a atenção a forma como eles entregam a contratação de trabalhadores a um preposto.”
Os trabalhadores, assim que chegaram à região de Botucatu, receberam a indicação de uma casa em que poderiam ficar, durante o período em que estivessem em São Paulo para realizar o serviço, e cujo aluguel seria custeado pela empresa. De acordo com a fiscalização, a residência, no entanto, não dispunha de banheiros e era pequena demais para um grupo de 26 pessoas. Segundo os fiscais, a Citrosuco se negou a bancar a permanência em outro local que não aquele indicado primeiramente, mesmo depois de os trabalhadores terem passado a procurar por outra forma de residência. As próprias vítimas passaram a custear seu alojamento em outro local, que era somente um pouco maior e não estava em condições tão melhores quanto o anterior. Hoje, segundo o auditor do Ministério do Trabalho, a casa em que o grupo residia é utilizada pela proprietária para a criação de galinhas e outros animais. A situação do local serviu como base para caracterizar a condição degradante do trabalho desempenhado pelo grupo de resgatados.
Teto da casa onde o contingente permaneceu estava sem forro
Teto da casa onde o contingente permaneceu estava sem forro
Com o aval de um funcionário, a empresa, além disso, indicou aos 26 trabalhadores o mercado de um terceiro envolvido no caso, no qual o grupo escravizado deveria abrir uma conta para comprar seus alimentos. Nas fiscalizações de trabalho escravo no campo, essa cadeia de compra de mantimentos em local determinado pelo empregador é conhecido como “sistema de cantina”. Normalmente, as pessoas escravizadas acabam por somar dívidas com o estabelecimento de tal forma que ficam presas ao local até saldarem o valor que devem. O grupo de 26 escravos chegou a acumular um débito de mais de R$ 15 mil com o comércio.
“Os trabalhadores chegaram a dizer que passaram fome, no momento em que houve a denúncia e também quando a fiscalização chegou ao local, porque não tinham mais como pagar as dívidas no mercado e comprar a própria comida”, detalha o auditor Renan Amorim. O fiscal do Ministério do Trabalho reforça que o caso de trabalho escravo caracterizou-se mais por uma forma de “violência indireta”, não tanto explícita, levando-se em conta as condições degradantes e a restrição da liberdade do grupo escravizado. O grupo esteve preso não só pelas dívidas acumuladas, mas também porque reteve suas carteiras de trabalho. “Isso impedia, por exemplo, que eles deixassem o local para procurar outro emprego”, acrescenta.
No momento em que a fiscalização chegou ao local, contudo, o grupo não desempenhava qualquer tipo de serviço. De acordo com os fiscais, não foi possível, portanto, verificar outras infrações cometidas pela Citrosuco, como o fornecimento ou não de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) ou o treinamento para o manuseio de ferramentas e agrotóxicos que os trabalhadores poderiam vir a precisar. O fato de os 26 empregados da Citrosuco estarem ou não realizando qualquer atividade não diminui o flagrante de escravidão, conforme explicam os auditores do MTE, já que, de toda a forma, os trabalhadores mantinham vínculo e se viam obrigados a estarem à disposição da empresa, até o momento em que foram resgatados.
FONTE: REPORTER BRASIL