A reportagem é de Felippe Aníbal e publicada pela Gazeta do Povo, 10-03-2014. Foto: Henry Milleo.
“Saia daqui, seu macaco preto”. As palavras ainda ecoam na mente do haitiano Stanley Joseph (foto), 27 anos, radicado em Curitiba. As ofensas racistas que recebeu levam às lágrimas o rapaz negro, franzino e educado. Foram gritadas pela dona de uma agência, onde ele procurava uma vaga de emprego. Antes fosse uma exceção, mas casos como os de Joseph beiram o corriqueiro. Juntam-se a outros, como o do volante Tinga, do Cruzeiro, entre uma infinidade de anônimos, expondo o preconceito que permanece impregnado na sociedade brasileira.
Para quem sente na pele – literalmente – as feridas abertas pelo racismo, o Brasil engatinha no combate à discriminação. Um projeto de lei (PL 6.418/05) que tramita na Câmara dos Deputados propõe o endurecimento contra quem cometer preconceito por cor, etnia, religião ou origem. Um dos principais itens da lei é que os crimes de injúria racial e apologia ao racismo – tipificados no Código Penal – passariam a ser considerados inafiançáveis e imprescritíveis.
Rigor
“Da forma como está hoje, há uma brecha. A pessoa [que cometeu racismo] contrata um bom advogado, que consegue que o crime seja enquadrado como injúria. Ela paga fiança e não acontece nada”, explica o senador Paulo Paim (PT), autor do projeto. “Acredito que a lei vai funcionar como um inibidor”, observa.
Militantes negros ressaltam, no entanto, que é preciso avançar para além do aperfeiçoamento dos mecanismos jurídicos. O advogado Antonio Leandro da Silva avalia que os “operadores do direito” não estão preparados para lidar com casos de racismo. “Nem mesmo inquéritos policiais são instaurados”, ilustra. Além disso, entende que a aplicação da legislação tem sido branda com quem comete a discriminação.
“Talvez nem precisemos de mais leis, mas de uma interpretação mais humanista, mais clara e objetiva no que diz respeito ao crime de racismo”, dz o advogado, que presta assessoria jurídica voluntária a movimentos negros do Paraná.
O presidente do Instituto Brasil e África, Saul Dorval da Silva, vê avanços tímidos e destaca a necessidade de políticas específicas voltadas aos negros, principalmente em educação e em saúde. “Quando reivindicamos cotas, é para tentar equilibrar a balança. É para evitar que o negro caia na marginalidade”, pontua. “Se essas diferenças e se os preconceitos não forem contidos, o Brasil vai virar uma África do Sul. Apartheid vai ser pouco”, finaliza.
“Sai daqui, seu preto macaco”, gritou a mulher
O haitiano Stanley Joseph caminhava pelas ruas do Centro de Curitiba, quando chegou a suas mãos o panfleto de uma agência de empregos. Acompanhado de um amigo, foi até a empresa, que lhes apresentou uma boa oferta: trabalhar como porteiro, por um salário de R$ 1,8 mil, além de benefícios. Para assumir a vaga, teriam que pagar R$ 390. Os dois chegaram a emprestar dinheiro de amigos, mas as vagas não existiam. Caíram no chamado “golpe do emprego”. Quando foram cobrar o dinheiro de volta, o preconceito veio com força.
“A dona da empresa ameaçou chamar a polícia e começou a gritar: ‘Sai daqui, preto macaco’, batendo o telefone na mesa. Eu saí de lá chorando. Foi muita humilhação e uma tristeza em minha vida”, conta, com os olhos rasos d’água.
Joseph registrou boletim de ocorrência no Centro Integrado de Atendimento ao Cidadão (Ciac) do Centro, mas diz que o caso nem sequer foi investigado. As acusações só não passaram em branco porque a Comissão de Direitos dos Migrantes da Ordem dos Advogados do Brasil e a Casa Latino-Americana (Casla) intercederam pelos haitianos. O Juizado Especial já condenou a empresa a pagar indenização de R$ 1 mil ao amigo de Joseph, em ressarcimento pelo “golpe”. O caso de Joseph ainda deve ser analisado. As apurações de racismo não teriam ido adiante.
“Eu queria justiça. Vim ao Brasil para trabalhar, não para ser bandido. Não para ter esse tratamento, por causa da minha cor”, lamenta. Apesar de falar cinco idiomas, Joseph permanece desempregado. Sonha juntar dinheiro para abrir uma lanchonete, trazer os pais para o Brasil e voltar a fazer trabalhos voluntários em hospitais infantis, como fazia no Haiti.
A ofensa que levou torcedor às lágrimas
Para cada caso de discriminação racial que se torna público, inúmeros outros permanecem ocultos, seja por vergonha da própria vítima ou porque a sociedade tende a fechar os olhos à dor alheia. Esta é a percepção de militantes do movimento negro. “Você já sente no olhar. O olhar diferente que as pessoas te dão já revela [o preconceito]”, diz Saul Dorval da Silva.
Ele assistia pela tevê à partida entre Cruzeiro e Real Garcilaso, do Peru, quando a torcida do time peruano começou a imitar um macaco cada vez que o volante Tinga pegava na bola. Impotente diante da situação vivida pelo atleta negro, Silva foi às lágrimas. “Eu chorei, porque sei o que é estar na pele e, em pleno século XXI, ser diminuído por ser preto. Me senti humilhado, como ele”, conta.
O advogado Antonio Leandro também já sentiu a sutileza com a qual o racismo se apresenta. Uma vez, quando foi atender um futuro cliente em domicílio, percebeu que a cor de sua pele causou espanto. “Quando abri a porta e a pessoa me viu, levou um susto. É como se ela não tivesse pensado na possibilidade de um negro ser advogado”, lembra. E acrescenta: “Mas não pense que Pelé e o Joaquim Barbosa não passaram por isso.”
Histórias cruzadas
Relembre outros casos de racismo no Brasil, em 2014, e seus desdobramentos:
Fevereiro
• O volante Tinga, do Cruzeiro, foi vítima de racismo, durante um jogo contra o Real Garcilaso, do Peru, pela Taça Libertadores da América. O cruzeirense entrou no segundo tempo e, cada vez que pegava na bola, a torcida do time peruano guinchava como um macaco.
• O Tribunal de Justiça de São Paulo decide, em caráter liminar, que a aposentada Davina Castelli, de 72 anos, responda em liberdade o julgamento de um recurso. Ela foi condenada a quatro anos de prisão por racismo, por, em 2012, ter ofendido três negros em um shopping, na Avenida Paulista, em São Paulo. Segundo os autos, ela teria chamado as vítimas de “imundos” e “favelados”, teria ressaltado que não gosta de negros e que a entrada deles em shoppings deveria ser proibida.
Março
• A Justiça de São Paulo determinou que a rede Walmart pague indenização de R$ 20 mil a um cliente, vítima de racismo. O caso ocorreu em 2009, em um supermercado de Carapicuíba, Grande São Paulo. Um jovem negro que havia comprado um litro de leite foi confundido com um ladrão e chamado de “negrinho” e “ladrão safado” por dois funcionários.
• O volante Arouca, do Santos, é chamado de “macaco” pelos torcedores do Mogi Mirim, interior de São Paulo. O árbitro Márcio Chagas da Silva também é chamado de “macaco” por torcedores e tem seu carro depredado em Bento Gonçalves (RS), depois da partida entre Esportivo e Veranópolis. Bananas foram colocadas no automóvel.
FONTE: GAZETA DO POVO
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