Marcelo Barros (*)
Conforme as estatísticas, depois da Nigéria, o Brasil é o país que tem a mais numerosa população afro-descendente do mundo. É mais negro do que muitos países africanos. No Brasil, a população afro-descendente chega a ser quase 60% dos brasileiros, mas continua a ter menos acesso do que os brancos às universidades, aos trabalhos liberais e à plena participação na cidadania social. Basta lembrar que, nos últimos 30 anos, o Brasil registrou mais de dois milhões e meio de mortes por causas externas, sendo que 82% eram homens e destes mais de 60% negros ou afro-descendentes. Conforme a ONU, na Bahia, onde mais de 80% da população é negra, para cada assassinato de um rapaz branco entre 15 e 30 anos, são assassinados 21 jovens negros na mesma faixa etária.
No Brasil, qualquer expressão de racismo é considerada crime grave e imprescritível. No entanto, ainda temos um longo caminho a percorrer para retirar da memória cultural dos brasileiros o preconceito e a discriminação racial, heranças da escravidão, abolida oficialmente, mas, na prática, mantida em relações de trabalho injustas e em uma estratificação social rígida e impiedosa.
Há mais de 30 anos, o presidente da República instituiu o 20 de novembro, aniversário do martírio de Zumbi dos Palmares, como “dia nacional da união e consciência negra”. Atualmente, esse dia é feriado em mais de mil municípios brasileiros. Em muitos outros, embora não o seja ainda, toda essa semana é coroada com eventos sobre a imensa contribuição das raças negras na história e na construção das culturas formadoras do Brasil.
A Fundação Cultural Palmares e o governo federal têm feito esforços para mudar essa situação. O governo criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República que ocupa um nível de ministério. Desde 2003, o Programa Brasil Quilombola (decreto 4.887/03) monitora e estimula, por meio de articulações setoriais e interinstitucionais, as ações governamentais para o desenvolvimento sustentável das comunidades remanescentes de Quilombos, assim como de outros segmentos minoritários da população ou comunidades tradicionais e de cultura originária. A Constituição de 1988 garantia o direito das comunidades negras e remanescentes de quilombos à posse de suas terras ancestrais e à manutenção de sua cultura própria. Entretanto, ainda faltam leis complementares para por em prática à Constituição e essa, quando não favorece à elite, é facilmente esquecida.
De acordo com a noção vigente, quilombos são áreas habitadas por negros, descendentes de escravos fugidos da escravidão e que continuam ainda hoje a manter costumes e modo de viver próprios à sua cultura. Essas comunidades, assim tradicionais, existem e devem ser protegidas e fortalecidas. Conforme os dados oficiais, atualmente, no Brasil, existem mais de 3.000 comunidades quilombolas reconhecidas e com documentos oficiais. Esses quilombos espalham-se por quase todos os estados do país e são símbolos da resistência dos pequenos. Servem de modelos como comunidades verdadeiramente solidárias. É importante que se reconheça: o mais importante não é a estrutura material e sim o espírito quilombola. Deve ser reconhecido como quilombo toda comunidade, constituída por negros, brancos e índios que vive práticas de resistências e experiências comunitárias. Se uma comunidade pobre, formada em sua maioria por negros e mulatos, constrói uma trajetória de libertação para a população em situação de risco social e sem segurança econômica, deve ser reconhecida como quilombo.
Conforme o “Índice Global da Escravidão”, divulgado nessa segunda feira, 17 de novembro, pela organização Walk Free Foundation, de Londres, ainda temos no mundo atual 35, 8 milhões de pessoas escravizadas ou que vivem em condições semelhantes à escravidão. No Brasil, ainda se calculam em 150 mil as pessoas que vivem nessa situação. Conforme a mesma instituição internacional, ligada à ONU, no mercado atual, o preço médio de um escravo caiu para 90 dólares. Por esse dinheiro, uma pessoa perde sua liberdade individual e os seus direitos de pessoa humana digna e inviolável.
Todos nós, brasileiros, temos responsabilidade social, junto com o governo, de trabalharmos por um país mais igualitário e justo. Ainda hoje, a cada dia, acontecem expressões de racismo e de discriminação social, principalmente contra as formas de culto e religiões de matriz afrodescendente. A manutenção das religiões ancestrais e de expressões culturais negras, mantidas vivas de geração em geração, têm sido instrumentos importantes para a unidade dessas comunidades e para garantir uma mais profunda consciência da dignidade dos seus membros.
Para os cristãos, um valor central que a Bíblia aponta é a consciência da cidadania de todos os seres humanos, como filhos e filhas de Deus e cidadãos do seu reino. Em nome de Deus e da Bíblia, ninguém deveria discriminar outras comunidades religiosas. Para os cristãos da primeira geração, o apóstolo Paulo escreveu: “É para que sejamos livres que Cristo nos libertou” (Gl 5, 1. 13). “Onde está o Espírito de Deus, aí tem de haver liberdade” (2 Cor 3, 17).
(*) Marcelo Barros é monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas
FONTE: ENCONTRO COM MARCELO BARROS
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