Por Jacques Távora Alfonsin (*)
Dia 21 deste novembro, realizou-se em Porto Alegre, uma audiência pública na Câmara de Vereadores, com a participação de lideranças de associações de moradores, movimentos populares dedicados à defesa de gente pobre sem-teto e sem terra, autoridades representativas dos três poderes do Estado, sob a inspiração do lema “despejo zero”, motivado pela onda de violência desencadeada no Brasil, desde a Copa do mundo contra moradoras/es de favelas, vilas periféricas de metrópoles, loteamentos não regularizados.
No dia anterior, foram feitas visitas às várias comunidades pobres de Porto Alegre que estão sendo vítimas de ações de reintegração de posse, ameaçadas de perderem suas casas.
Com base nos dados dessa realidade, a audiência do dia 21 objetivou avaliação detalhada das responsabilidades políticas e ético-jurídicas pelo sofrimento presente em cada um daqueles espaços urbanos.
Entre as propostas de discussão visando empoderar a defesa dos direitos humanos feridos por essa violência, partiu-se da avaliação das suas causas, bem como dos encargos próprios dessas responsabilidades, passíveis de serem efetivamente cobrados de quem os deve suportar.
Sobre as causas da injustiça social refletida no número de pessoas sem-teto ou morando mal, uma das contribuições ao debate dessa realidade apareceu na forma de se identificar o modo pelo qual o mercado e as diferenças de renda entre as pessoas das cidades geram efeitos decisivos, de regra injustos e ilegais, sobre os espaços, os tempos, as culturas, as interpretações das leis que disciplinam o acesso à terra urbana e rural em todo o país.
Uma releitura atualizada da “plataforma brasileira para prevenção de despejos”, disponível na internet, constatou o ralo efeito da maioria das denúncias ali presentes tanto sobre as políticas públicas até agora implementadas no país para garantir direitos humanos fundamentais do povo pobre, de acesso à terra urbana e rural, quanto para impedir a violência presente na execução de mandados judiciais contra ele deferidos. O apetite do mercado por terra como objeto de mercadoria está bem longe ainda de ceder espaço do seu poder açambarcador.
A desconsideração, por exemplo, da simples comparação que se faça entre a função social da posse que uma favela, algum outro espaço urbano, julgado “irregular” ou “clandestino” servindo de abrigo para grande contingente de pessoas pobres, cumprem em relação ao solo, frente ao desrespeito da mesma função por propriedades privadas de grande extensão de terra vazia em desuso ou abandono, demonstrou a pouca atenção que o Poder Público dá à uma diferença dessa importância.
A obrigatória audiência das comunidades moradoras em espaços de terra urbana objeto de intervenções públicas capazes de afetar seu direito de moradia – uma das principais conquistas da democracia participativa consagrada no Estatuto da Cidade – continua padecendo de pouca efetividade, embora imposta por expressa previsão, de acordo com mais de uma disposição daquela lei:
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;
XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;
Se as autoridades presentes nessa audiência pública esperavam alguma crítica favorável do auditório a políticas compensatórias do tipo Minha Casa minha vida e Bolsa família, bem como “bônus moradia” e “aluguel social”, só receberam apoio enquanto respeitado apenas o caráter emergencial das mesmas e desde que se abstenham de gerar dependência.
O curto espaço de tempo reservado à audiência não permitiu às/os presentes, como se previa, uma analise crítica conjuntural atualizada de alguns fatos diretamente ligados aos temas desse encontro. Pouco se conseguiu debater, por exemplo, sobre os efeitos positivamente esperados das notificações que o Municípío de São Paulo está enviando aos proprietários de imóveis ociosos daquela cidade, objetivando implantar o IPTU progressivo.
Embora sem um aprofundamento maior, todavia, a audiência pública não deixou de salientar os obstáculos ainda presentes à conscientização do povo e do próprio Poder Público sobre o significativo empoderamento que o Estatuto da Cidade pretende garantir aos direitos humanos fundamentais das pessoas de baixa renda.
As funções sociais da propriedade e da cidade, as várias formas de intervenção pública visando apoiar iniciativas favoráveis ao bem-estar da população, dirigindo ou induzindo serviços e obras ainda pouco exploradas como a da regularização fundiária e do chamado urbanizador social, corrigindo distorções geradas por vícios burocráticos encarregados de tudo prorrogar em nome do devido processo legal, a importância que as Defensorias Públicas estão demonstrando em defesa de multidões pobres ameaçadas de perderem suas moradias, e o papel que os termos de ajustamento de conduta (TACS) do Ministério Público podem representar em favor das mesmas, em tudo isso, mesmo de forma sumária, alcançou-se algum avanço.
Como toda a iniciativa tomada por movimentos sociais populares, a do despejo zero também vai dividir as opiniões entre quem dele vai rir, como um sonho sem nenhuma chance de realização, e quem dele fará perseverante meta de luta contra o pesadelo da injustiça social refletida em todo o despejo de moradia e terra. As/os militantes presentes nessa audiência pública estão comprometidos com essa meta.
(*) Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul, membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
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