sábado, 30 de janeiro de 2016

CPT: Balanço da Questão Agrária em 2015

A Comissão Pastoral da Terra faz o balanço do ano de 2015 sobre a Questão Agrária brasileira. 

O ano de 2015 foi marcado pelo desmonte de órgãos do Governo e por cortes de recursos públicos para a Reforma Agrária e demarcação de territórios quilombolas e indígenas. A aliança do Estado brasileiro com o agronegócio se intensificou, atingindo diretamente o conjunto dos povos do campo. A violência contra as comunidades camponesas e povos indígenas foi praticada não só pela lógica do capitalismo, como também pelo Estado brasileiro.
O número de assassinatos no campo cresceu. A destruição das florestas aumentou. O uso de veneno, que chega a nossas mesas, foi ampliado. Os recursos para o Programa de Construção de Cisternas e outras tecnologias sociais sofreram cortes e no campo persistiu o trabalho escravo. A natureza foi, cada vez mais, o filão das empresas capitalistas. Com isso, seguiu intensamente a apropriação das águas, das terras, do sol e do ar. A natureza foi e está sendo privatizada. Neste cenário, fica mais clara a lógica do capitalismo e do Estado brasileiro.
 Do outro lado, a memória dos povos do campo e a crescente violência o fizeram permanecer em luta. Foram inúmeras ocupações e retomadas de terra, marchas, jornadas e protestos que alimentaram a rebeldia necessária para manter a esperança na construção da Terra sem males, do Bem Viver.
Confira abaixo o balanço da questão agrária brasileira no ano de 2015, elaborado pela Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste II:
No início de 2015, o sentimento era de que, após as tensões eleitorais diante da possibilidade de vitória de um candidato expressamente de direita, seria possível uma polarização de projetos e mudanças de rumo na política para o campo brasileiro. Ledo engano: os cenários político e econômico brasileiro se agravaram e produziram impactos negativos nas lutas do campo.
O Congresso Nacional, com a mais conservadora formação das últimas décadas, manteve-se a serviço do poder econômico, que financiou as ricas campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, se colocou como palco da crise política e do prolongamento da disputa eleitoral, em prejuízo de uma pauta que fosse de interesse real da sociedade. Houve uma preocupante predominância de pautas conservadoras. São exemplos: os inquietadores projetos para implantar a terceirização, a redução da maioridade penal, a restrição da demarcação das terras indígenas, a mudança na rotulação de produtos transgênicos, o tratamento restritivo do estatuto da família, a mudança do estatuto do desarmamento, a mudança no regime de partilha do pré-sal, dentre outras iniciativas voltadas ao conservadorismo e ao retrocesso nas conquistas sociais.
Com isso, as injustiças, as desigualdades sociais e ambientais voltaram a se intensificar e o Governo andou para trás no caminho de superar os desafios e impasses da luta da terra, deixando de atender a demanda histórica pela Reforma Agrária e os direitos dos povos do campo.
Cortes do orçamento da Reforma Agrária
Em consequência desse quadro, as desapropriações de terras foram drasticamente prejudicadas com o corte de 15,1%, afetado pelo contingenciamento do orçamento da União. O Ministério do Desenvolvimento Agrário sofreu, em termos absolutos, uma redução de 49% do montante previsto inicialmente na Lei Orçamentária Anual de 2015. O Incra, que possuía um orçamento inicial da ordem de R$ 1,65 bilhão, atuou em 2015 com metade deste valor: R$ 874,37 milhões.
Sequer foi cumprida a estimativa do governo para 2015 que era de atingir uma meta de trinta mil novas famílias assentadas e, até 2018, zerar o número de trabalhadores e trabalhadoras rurais acampadas no país, caso não ocorressem mais ocupações até essa data - tendo em vista que os movimentos sociais indicam o número atual de 120 mil famílias acampadas no país. Os movimentos sociais do campo questionam os dados do MDA que declarou ter assentado cerca de 13 mil famílias de trabalhadores rurais até outubro, quando somente cerca de sete mil novas famílias haviam sido assentadas até então. De todo modo, o número é muito aquém da necessidade das famílias acampadas no Brasil.
Continuam os conflitos e violência no campo
A manutenção da aliança com o agronegócio acarretou o agravamento da violência vivida pelas comunidades camponesas que lutam por direitos e pela permanência em seus territórios. Os registros parciais da CPT apontam que o Nordeste foi a região em que houve mais ocorrência de conflitos no campo em 2015, representando 35% dos casos em todo o país. Em seguida, veio a região Norte, com 27% das ocorrências, o Centro-Oeste com 17%, o Sudeste com 15% e, finalmente, o Sul do país com 5,5%.
Parte significativa das ocorrências de conflitos neste ano continuou sendo provocada pelo poder privado, com destaque para fazendeiros, grandes latifundiários, grandes empresas, mineradoras, hidrelétricas, portos, dentre outras grandes obras de infraestrutura. O fato demonstra uma disputa, excessivamente desigual, por territórios e bens naturais entre o poder privado e as comunidades camponesas. Apesar disso, permanece alarmante a violência praticada pelo próprio Estado Brasileiro, através da força policial, dos investimentos aos grandes projetos desenvolvimentistas, das ações do Poder Judiciário e das portarias e decretos que limitam as demarcações e desapropriações.
No Estado de Pernambuco, um dos destaques da violência ficou por conta do Complexo Industrial e Portuário de Suape, como revelam as denúncias feitas pelos camponeses posseiros da área quanto a abusos cometidos pela empresa pública, sobretudo de ameaças, despejos forçados e de criminalização dos mesmos. Em diversas audiências públicas, os camponeses denunciaram publicamente as ações de violência protagonizadas pelo Complexo, inclusive a existência de trabalhadores ameaçados de morte e a forte atuação de milícias armadas contratadas e formadas por Suape. Foram feitas denúncias internacionais, inclusive em audiência na Comissão Interamericana de Direito Humanos e com o relator especial da ONU sobre defensores e defensoras de Direitos Humanos.
Outro exemplo da violência sofrida pelas comunidades camponesas ocorreu na Fazenda Salgadinho, no estado da Paraíba. Localizada no município de Mogeiro, a área foi palco de um conflito que envolveu 33 famílias de posseiros que vivem e trabalham no local há mais de 50 anos. Há oito anos, os proprietários vinham ameaçando os camponeses/as de expulsão. Em 2015, os capangas da Fazenda, atiraram, com frequência, nas proximidades das casas dos posseiros, como forma de ameaça e amedrontamento. Em um desses ataques, seis posseiros foram baleados no tórax e pernas, sendo que um deles teve cinco perfurações no abdômen. Vários boletins de ocorrência foram feitos e nenhuma providência eficaz foi adotada.
A Terra encharcada de sangue
O ano que se encerra também deixa outra triste marca na história do campesinato, com os assassinatos no campo se destacando e ganhando repercussão nacional e internacional. Segundos dados parciais da CPT, o número de assassinatos no campo é o maior desde 2004. Foram 49 assassinatos de camponeses, sobretudo de posseiros, sem terras e assentados da Reforma Agrária.
Se a região Nordeste concentra o maior número de ocorrências de conflitos agrários, o Norte do país se destaca por possuir os piores índices de conflitos com vítimas fatais. Dos 49 assassinatos no campo, 21 ocorreram somente no estado de Rondônia. De acordo com a CPT no estado, os casos expressam a espiral crescente de assassinatos de sem terras por jagunços, a mando dos latifundiários, com denúncias de envolvimento de policiais e milícias armadas. Além de Rondônia, 19 assassinatos foram registrados no estado do Pará e cinco no Maranhão. Estes foram os três estados que lideraram o índice de violência no campo com vítimas fatais em 2015.
Um dos casos de assassinato que mais chocou o país ocorreu no município de Conceição do Araguaia/PA. Seis pessoas de uma mesma família foram assassinadas a golpes de facão e tiros. O crime foi motivado por disputa por lote de terra, ocasionadas pela morosidade dos processos de regularização fundiária. Esta é uma das principais causas do acirramento da violência no campo. Quanto mais o Incra demora para solucionar os conflitos fundiários, mais violência e assassinatos acontecem envolvendo vítimas e pessoas inocentes, nas áreas das comunidades tradicionais e de ocupações.
Outra vítima fatal em circunstâncias absurdas foi a trabalhadora rural Maria das Dores dos Santos, conhecida como Dora, que vivia na comunidade de Portelinha, município de Iranduba/AM. Ela foi sequestrada de sua casa por cinco homens fortemente armados e executada com 12 tiros de pistola. Dora vinha sendo ameaçada de morte e tinha procurado ajuda na Delegacia de Iranduba, local em que registrou 18 boletins de ocorrência por ameaça. A trabalhadora também havia feito denúncias na Assembleia Legislativa.
Meio ambiente: o verde do dólar é o que interessa
Os dados oficiais do Governo Federal apontam que houve um aumento de 16% do desmatamento da Amazônia entre agosto de 2014 e julho de 2015, em comparação com o mesmo período anterior. Os Estados do Amazonas (54%), Rondônia (41%) e Mato Grosso (40%) foram os que mais sofreram com o aumento, que foi mais acentuado no velho e bem conhecido arco do desmatamento (faixa de fronteira da expansão da soja e da pecuária, que avança sobre o coração da Amazônia). O fato revela a tendência de crescimento dos índices de desmatamento, provocado por incentivo do próprio Estado à expansão dessas atividades sobre a floresta, incluindo os territórios de povos e comunidades tradicionais.
A tragédia de Mariana, além de ser um dos maiores desastres ambientais na história, revelou que o Estado prossegue na contramão das necessidades globais, atendendo os interesses de empresas criminosas que financiam parlamentares e defendem o crescimento a qualquer custo. As bancadas da mineração, ruralistas e de outros parlamentares federais e senadores ligados ao mercado, tentam, através do Projeto de Lei 654/2015, enfraquecer ainda mais o processo do licenciamento ambiental, visando encurtar o tempo de análise técnica dos projetos e eliminar etapas do processo de licenciamento.
O veneno nosso de cada dia
Na contramão dos alertas das organizações sociais sobre segurança e soberania alimentar, o Brasil continuou ampliando a sua liderança como maior consumidor mundial de agrotóxicos, mantendo a autorização de comercialização e uso de produtos que já foram banidos em vários países. Enquanto de um lado, os órgãos reguladores são flexíveis com a liberação desses produtos no país, a estrutura dos órgãos de vigilância e fiscalização foi concebida para não funcionar e impede o acompanhamento das populações expostas, deixando de verificar quais são os riscos do contato com essas substâncias.
O Instituto Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que faz avaliações sobre diversos agrotóxicos, classificou alguns desses produtos como carcinógeno humano, dentre eles o glifosato e o herbicida 2,4-D, que têm o seu uso permitido no Brasil. Enquanto o Brasil se afoga em agrotóxicos, organizações e movimentos sociais apontam que a única forma de retirar o veneno da mesa é através da agroecologia e de políticas de estado que possam investir na produção camponesa, historicamente ignorada pelos Governos.
A convivência com o Semiárido não foi prioridade
2015 foi o quinto ano consecutivo da estiagem considerada a maior dos últimos 80 anos no país, com cerca de mil municípios na região decretando situação de emergência. Apesar da importante redução da mortalidade humana, da fome e dos saques, em razão de programas públicos exigidos pelo povo sertanejo, o nordestino continuou sofrendo severos impactos diante da prioridade dos Governos aos grandes empreendimentos e ao latifúndio.
De fato, o prolongamento do período de seca representou o aumento da perda da produção agrícola e pecuária na região, provocando a descapitalização das comunidades camponesas que vivem não somente no sertão, mas também nas zonas da mata e litoral nordestino. Este, por sinal, será um dos principais desafios para os próximos anos: a recomposição do rebanho dizimado, que é fonte de renda e alimentação de muitas famílias camponesas.
Por sua vez, a secagem nos açudes e cacimbas também tem sido uma das consequências deste aterrador contexto. Os principais reservatórios e geradores de energia do Nordeste estão com níveis baixíssimos e em colapso. Neste contexto, os estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí ocupam a posição mais grave prevista na ordem classificatória adotada pela Agência Nacional das Águas (ANA).
Do ponto de vista dos camponeses, dos pequenos agricultores e das populações tradicionais, esse quadro continua agravado por um aspecto há muito conhecido no Nordeste: a concentração das águas para o desenvolvimento de grandes empreendimentos industriais ou agropecuários voltados para a exportação. Significa dizer que, enquanto os trabalhadores/as viveram em 2015 a pior seca das últimas décadas, as empresas (de fruticultura, mineração, automotiva, entre outras) apropriaram-se do bem em escassez, sem que os poderes públicos adotassem qualquer medida protetora para a população.
Tais empreendimentos perpetuam o modelo de apropriação da água no Nordeste. Com isso, tem-se o aumento considerável de casos de disputa pela água na área rural. Um dos exemplos deste fenômeno é o caso dos conflitos pela água nos municípios inseridos na Bacia hidrográfica Apodi-Mossoró/RN, além da já denunciada apropriação das águas do aquífero Jandaíra, um dos maiores do Nordeste.
As organizações sociais questionaram, em 2015, grandes empreendimentos em curso no Nordeste, a exemplo do canal do sertão, considerada a maior obra de infraestrutura hídrica no estado de Alagoas e um dos maiores do Nordeste. O canal, que compõe o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, terá 250 quilômetros de água para 42 municípios alagoanos, do Sertão ao Agreste. A cada trecho é uma festa pública de inauguração e nada da água chegar à torneira dos trabalhadores/as. De acordo com especialistas, obras deste porte costumam destinar somente cerca de 6% da água para consumo humano e o restante para irrigação por grandes empreendimentos. As organizações sociais que atuam na área denunciam que esta água será um privilégio para poucos. Pelo mesmo caminho, se teme que vá a tão polêmica obra da Transposição do Rio Francisco, que em 2015 ganhou destaque por investigações de supostos desvios elevados de verbas públicas em sua construção.
Mesmo diante de um cenário estarrecedor, estima-se que a migração para outras regiões do país foi menor em 2015, fato este atribuído justamente ao pouco que se conquistou de Reforma Agrária e de iniciativas de convivência no semiárido. Contudo, tais iniciativas sofreram cortes drásticos em 2015, como os sofridos pela Articulação Nacional do Semiárido (ASA).
Trabalho escravo em 2015: Recuo dos números, crescimento das preocupações
O ano de 2015, que iniciou com a suspensão da Lista Suja de Trabalho Escravo por decisão liminar do STF a pedido de grandes construtoras, chega ao fim com graves preocupações quanto à continuidade da política brasileira de combate ao trabalho escravo.
Em 2015, cerca de mil trabalhadores/as foram resgatados da escravidão – um número em nítida redução se comparado à média dos quatro anos anteriores (2.260). Essa queda ocorre no exato momento em que parte dos congressistas, no afã de reduzir mais e mais direitos, quer aprovar a revisão da definição legal do trabalho escravo. A alegação é de que o conceito atual, enunciado no artigo 149 do Código Penal – em vigor desde 2003 e parabenizado internacionalmente –, abre a porta a exageros, arbitrariedade e insegurança jurídica. Trata-se de uma alegação falsa, pois o baixo efetivo de auditores fiscais em atividade tem reduzido as autuações, considerando como em condições análogas à escravidão apenas um caso em cada sete estabelecimentos fiscalizados, sob o frágil argumento de que trabalho escravo só se caracterizaria pela soma de violações e não pela verificação de infrações isoladas.
Segundo dados parciais, os estados que lideraram o ranking de trabalho escravo identificados em 2015 pela CPT, foram Minas Gerais, Maranhão, Rio de Janeiro e Pará. As principais atividades que se beneficiaram da prática do trabalho escravo em 2015 foram: a construção civil (243 resgatados), a pecuária (133) e o extrativismo vegetal (114), sendo 52 no PI e 37 no CE. Na prática do trabalho escravo em geral, as atividades econômicas ligadas ao campo predominaram sobre as atividades urbanas. Segundo a análise da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), do Ministério do Trabalho, o perfil atual das vítimas é de jovens do sexo masculino, com baixa escolaridade e que tenham migrado internamente no Brasil. Doze trabalhadores encontrados tinham idade inferior a 16 anos, enquanto 24 tinham entre 16 e 18 anos.
Vale lembrar que no final do ano, poucos dias após a entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos à militante Brígida Rocha, da Campanha De Olho Aberto para Não Virar Escravo, coordenada pela CPT, uma pronta mobilização permitiu evitar no Senado a votação-relâmpago do Projeto de Lei que - sob pretexto de regulamentar a emenda constitucional do confisco da propriedade dos escravistas - propõe eliminar os principais elementos caracterizadores do trabalho escravo, ou seja: os que remetem à violação da dignidade da pessoa (as condições degradantes e a jornada exaustiva).
Lutas que marcaram 2015
Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo Estado, pelo agronegócio e grandes empreendimentos, os camponeses e camponesas enfrentaram os desafios que lhes foram impostos, lutaram pela Reforma Agrária e pela demarcação de seus territórios.
O ano foi de intensas mobilizações e lutas. Algumas destas marcaram o ano que se encerrou, como a jornada das mulheres da Via Campesina e a marcha das Margaridas, realizadas em março e agosto, respectivamente, mobilizando milhares de camponesas de todo o país.
As ocupações de terras também ganharam força em 2015. Conforme dados parciais da CPT, 34% dos latifúndios ocupados estão localizados na região Nordeste, 26% no Centro-Oeste, 17% no Sudeste, 11,5% no Sul e finalmente 11% no Norte. Os estados da Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraná e Pernambuco lideraram a lista das ocupações de latifúndios improdutivos. Grande parte dessas foi realizada pelo MST no mês de abril, durante a sua Jornada de caráter nacional, o Abril Vermelho.
O movimento sindical também ocupou as ruas em 2015, a exemplo da realização de mais uma edição do Grito da Terra, realizado em Brasília no mês de maio. A mobilização nacional, que reuniu milhares de trabalhadores e trabalhadoras rurais, foi precedida de um conjunto de manifestações estaduais e regionais.
Os povos indígenas de todo o Brasil também realizaram grandes mobilizações e fizeram de Brasília um de seus principais campos de luta contra a PEC-215. Um exemplo emblemático foi a manifestação ocorrida no mês de outubro, quando centenas de indígenas, quilombolas e pescadores tradicionais ocuparam a Câmara dos Deputados, em protesto à PEC. Na ocasião, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, recriminou os manifestantes. As luzes, microfones e ar-condicionados foram desligados, sob ordens do presidente da Câmara. A polícia cercou o local e impediu a entrada de advogadas e advogados. Além dos protestos, as populações indígenas exigiram respeito, denunciaram as violências de que são vítimas em inúmeros fóruns e tribunais nacionais e internacionais e reivindicaram o cumprimento da Constituição para impedir retrocessos ou supressão de direitos.
Perspectivas para 2016
A ameaça real, de que os preocupantes cenários político e econômico vividos em 2015 se prolonguem no ano de 2016, evidencia que somente com muita organização e luta é que os trabalhadores rurais e movimentos sociais conseguirão evitar a clara tendência da permanência dos conflitos agrários.
As comunidades camponesas impactadas por este modelo de desenvolvimento continuarão desafiadas a assumir para si a responsabilidade da resistência como único caminho para permanecerem existindo. De fato, não são poucos os desafios que se apresentam para o ano que se anuncia, em razão da persistência do modelo alicerçado no agronegócio, da exploração do latifúndio e sem qualquer preocupação com os povos do campo e com o meio ambiente. Os desafios são enormes e, aos povos do campo, caberá a firmeza no olhar e a coragem nos passos para avançar em seus direitos, como sempre fizeram.                         FONTE: CPT
Mais informações:
Cristiane Passos (assessoria de comunicação da CPT Nacional): (62) 4008-6406 / 8111-2890
Elvis Marques (assessoria de comunicação da CPT Nacional): (62) 4008-6414 / 8444-0096 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

VALE É MULTADA EM R$ 34,2 MILHÕES POR DANO AMBIENTAL NO PORTO DE TUBARÃO (ES)

A Polícia Federal realizou, na quinta-feira (21), uma coletiva de imprensa para explicar o motivo da interdição do Complexo Portuário de Tubarão, Vitória (ES). A constatação é a de que partículas de minério e também de carvão estariam sendo lançadas diretamente no mar de Camburi. O Porto de Tubarão é administrado pela Vale. Uma decisão judicial determinou “a suspensão temporária do exercício de atividade econômica por parte das empresas Vale e ArcelorMittal Brasil, no Píer II (minério de ferro) e no Pier de Carvão (Praia Mole)”.
Agência Reuters - ( por Marta Nogueira) - A Vale e a ArcelorMital foram multadas em 34,2 milhões de reais cada uma pela prefeitura de Vitória, capital do Espírito Santo, por causarem danos ao meio ambiente com suas atividades no porto de Tubarão.
A multa foi aplicada na quinta-feira, quando a Vale cumpriu decisão da Justiça e interrompeu as exportações a partir de Tubarão --responsável pelo embarque de mais de 30 por cento de sua produção-- até que tome medidas ambientais.
Em nota, a prefeitura explicou que as multas têm caráter punitivo, "mas não isentam as empresas de reparar os danos ambientais provocados".
Procuradas, a Vale e a ArcelorMital informaram em nota que já foram notificadas sobre a multa pela Secretaria de Meio Ambiente de Vitória (Semmam) e que irão avaliar as informações.
A Vale acrescentou que vem atuando e investindo em seus sistemas de controle ambiental e cumprindo "rigorosamente" a legislação ambiental vigente.
FONTE: REUTERS


sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Carta Aberta da Rede Igrejas e Mineração aos bispos e pastores da América Latina

Rede ecumênica “Igrejas e Mineração”, formada por cerca de 70 entidades latino-americanas, destaca, em Carta Aberta aos bispos e pastores da América Latina, a preocupação “pelo crescimento da violência e criminalização de pessoas e comunidades inteiras que se posicionam criticamente frente à mineração na América Latina”. Confira o documento na íntegra:

  1. Quem somos?
Igrejas e Mineração é uma rede ecumênica constituída por cerca de 70 entidades latino-americanas. Somos comunidades cristãs, equipes de pastoral, comissões pastorais diocesanas, equipes das diversas congregações religiosas, grupos de reflexão teológica, leigos e leigas reunidos por causa do desafio comum dos impactos e violações aos direitos socioambientais provocados por empresas mineradoras nos territórios onde vivemos e atuamos.
Cremos na força da organização popular nos territórios, a partir do intenso trabalho de lideranças cristãs, da mística e do compromisso das comunidades de fé. Elas defendem diariamente a existência das pessoas, suas culturas e relação com a Mãe Terra, seus projetos e estilos de vida frente aos projetos que as impactam e são expressão de grandes interesses externos e distantes das comunidades. Começamos a sentir a necessidade de nos reunirmos e nos articularmos a partir da crescente criminalização e perseguição de nossas lideranças[1], seja por parte das empresas mineradoras, seja por parte dos Estados, muitas vezes a serviço dos interesses empresariais. 
Por isso, em 2013, realizamos um primeiro encontro em Lima (Peru), que confirmou a importância da organização das Igrejas “de base”, do intercâmbio entre comunidades cristãs e do debate sobre estes temas, também no âmbito dos setores de coordenação da Igreja. Participou no encontro de Lima o bispo presidente da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz da CNBB, que motivou a realização de um segundo encontro no Brasil.
Em 2014, Igrejas e Mineração se reuniu então no Brasil, com um grupo mais sólido e articulado, que organizou a rede para o enfrentamento da violência socioambiental da mineração a partir das seguintes frentes de atividades: articulação internacional para o diálogo, a incidência e a denúncia; facilitação do diálogo entre comunidades cristãs de base e os setores de coordenação das Igrejas; educação popular e intercâmbio de experiências; reflexão bíblico-pastoral, sistematização e comunicação.
Produzimos o vídeo de aprofundamento e denúncia “Igrejas e Mineração”[2]; publicamos e divulgamos documentos de reflexão crítica sobre algumas iniciativas das empresas que buscam o apoio da Igreja institucional: “Um novo início para a mineração” e “Mineração em aliança”.
Integramos redes qualificadas de trabalho em defesa dos territórios e dos direitos, como a Rede Eclesial Panamazônica (REPAM) e o Observatório de Conflictos Mineros en América Latina (OCMAL); colaboramos com a Coordenação das Agências Católicas para o Desenvolvimento (CIDSE) e com algumas organizações religiosas credenciadas na ONU para a defesa dos direitos humanos: Franciscans International, Vivat International e Mercy International.
Temos interagido em muito com o Pontifício Conselho de Justiça e Paz e realizado um encontro (julho de 2015) entre o Conselho e representantes de trinta comunidades atingidas pela mineração em diversas partes do mundo.
  1. Por quê escrevemos
Estamos muito preocupados pelo crescimento da violência e criminalização de pessoas e comunidades inteiras que se posicionam criticamente frente à mineração na América Latina.
Por outro lado, nos preocupa a estratégia das empresas mineradoras. Elas não estão conseguindo demonstrar que as operações mineiras são sustentáveis; suas práticas de responsabilidade social corporativa não resolvem os graves danos e violações provocadas por suas atividades.
A nova estratégia das empresas, portanto, está sendo buscar apoio de instituições que têm credibilidade e podem conseguir a confiança do povo. Entre elas, estão as Igrejas.
Em diversas ocasiões, altos executivos das maiores empresas mineradoras se encontraram com a Igreja hierárquica, tanto de confissão católica, como anglicana e presbiteriana. Houve uma reunião no Vaticano em 2013, outra em Canterbury (Inglaterra) em 2014 e mais uma no Vaticano em 2015.
Também delegações das empresas, juntamente com representantes do mundo religioso, estão realizando visitas a alguns locais de mineração em países da América Latina. Querem demonstrar que as atividades de mineração são transparentes, respeitam os direitos humanos e são apoiadas pelas comunidades locais. Porém, os locais foram escolhidos pelas empresas, bem como as lideranças comunitárias que iriam encontrar-se com as delegações.
Tudo isso demonstra o interesse das empresas em se legitimar através dessa aproximação e aliança simbólica com as Igrejas. Ainda mais, o projeto “Mineração em aliança”, que algumas empresas quiseram estabelecer, propõe financiar os seminários e centros de formação das Igrejas para repensar teológica, espiritual e pastoralmente o significado e o valor da mineração para as comunidades.
Igrejas e Mineração critica fortemente essas práticas e escreve a bispos e pastores das Igrejas latino-americanas oferecendo os seguintes pontos de reflexão e ação:
  1. Posição da Igreja
As comunidades esperam que a Igreja não mantenha posições “neutras” frente aos conflitos gerados pela mineração. Reconhecendo “a imensa dignidade dos pobres” (LS 158), a Igreja deve continuar assumindo o grito deles e posicionar-se ao lado deles e da Criação.
É importante garantir o Consentimento Livre, Prévio e Informado de todas as comunidades que poderiam ser afetadas por um projeto de mineração, bem como o direito das mesmas de dizer NÃO à mineração.
Recordamos, a esse respeito, os numerosos documentos das Conferências Episcopais nacionais contra a exploração desregulada dos bens comuns, bem como a recente publicação do Conselho Latino-americano de Igrejas, em sintonia com esse tema: “Perspectivas bíblico-teológicas e os desafios da crise climática para as Iglesias na América Latina e Caribe”.
Também valorizamos a denúncia formal que a Igreja Católica da América Latina, através do Departamento Justiça e Solidariedade do CELAM, apresentou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em março de 2015, com o título “Posição da Igreja Católica ante à vulnerabilização e abusos contra os direitos humanos das populações atingidas pelas indústrias extrativas na América Latina”.
  1. Qual é o diálogo mais importante e urgente?
Estamos preocupados sobre a possibilidade de novas reuniões da Igreja com os executivos das maiores empresas mineradoras, em nível continental ou regional.
Esse tipo de encontros não irá gerar mudanças efetivas das empresas em suas práticas locais, assim como não percebemos essas mudanças depois dos encontros acontecidos em Roma e Canterbury.
 Em nossa opinião, o diálogo mais importante que os bispos e pastores necessitam fazer não é com as empresas, mas com todos os membros das Igrejas, a fim de definir posições comuns sobre esses temas. Ainda mais, recomendamos o diálogo com as comunidades, apoiando suas reivindicações e denúncias concretas. Dessa maneira, as Igrejas contribuem para o empoderamento das comunidades, para que sejam elas mesmas a dialogar com os Estados e as empresas.
Esperamos que essas simples reflexões contribuam para um debate interno às Igrejas latino-americanas sobre o tema da mineração. Estamos à disposição de bispos, pastores e comunidades no que podemos e sabemos oferecer, a partir de nossa experiência, espiritualidade e articulações, no cumprimento do mandato do cuidado da Casa Comum.
Rede Igrejas e Mineração, desde Bogotá, Lima, Santiago, Tegucigalpa, São Luís, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, New York, Roma, no dia 05 de janeiro de 2016.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Justiça Global lança relatório de inspeção sobre desastre socioambiental em Mariana

Bento Rodrigues, destruída no crime cometido pela Samarco / Foto: Daniela Fichino
Justiça Global lança nesta quinta-feira (14) o relatório “Vale de Lama - Relatório de inspeção em Mariana após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão” sobre as violações de direitos humanos decorrentes do maior desastre da história da mineração no país: o rompimento da barragem operada pela Samarco (Vale/BHP). O relatório aborda situações de grave violação ao direito à vida, à água, à moradia, ao trabalho, à saúde e ao meio ambiente, para as quais empresas e Estado têm falhado em fornecer respostas rápidas e efetivas. São também relatadas situações de hostilidade e criminalização de defensores e defensoras de direitos humanos e movimentos sociais.
O relatório aborda as características da operação da Samarco na região, que vinha em processo de expansão de suas atividades nos últimos anos. Trata ainda das deficiências de procedimentos de prevenção e segurança da empresa, sobretudo em seu Plano de Ações Emergenciais (PAE), que excluía a realização de simulações com as comunidades em caso de emergência e não contemplava a participação efetiva da população de comunidades situadas próximas das barragens. As deficiências dos procedimentos de alerta também foram ressaltadas pelos moradores das localidades entrevistados pela Justiça Global nas visitas em campo.
Foram igualmente constatados inúmeros impactos psicossociais entre os atingidos pelo rompimento da barragem de rejeitos. Aos sintomas de mal estar físico, como vômitos e diarreia, soma-se o trauma decorrente da violência vivenciada com a chegada da torrente destruidora de rejeitos. Diversas pessoas perderam também a sua fonte de trabalho e renda, seja porque suas criações e plantações foram completamente arrasadas, seja porque dependiam dos rios da região para abastecer o rebanho e os cultivos.

Do ponto de vista legal, o relatório aborda as estratégias de desresponsabilização adotadas empresas acionistas.Vale e BHP Billiton, duas das três maiores mineradoras do mundo, ocultam-se sob o manto de outra personalidade jurídica (a Samarco Mineração) para não assumir suas obrigações no campo dos direitos humanos. Enquanto a BHP Biliton aposta na estratégia de “desresponsabilização operacional”, comportando-se apenas como um investidor da Samarco, as declarações dos diretores da Vale vão além e ignoram as suas operações de descarga de rejeitos na barragem rompida, realizadas enquanto empresa autônoma. A estratégia das empresas é tratar este desastre sem precedentes no âmbito da responsabilidade social corporativa, aderindo a ações voluntárias que resguardem sua imagem e valor de mercado.

Para a advogada Raphaela Lopes, da Justiça Global, o desastre ressaltou a necessidade de ampliar o debate sobre responsabilização de empresas e do Estado em desastres como o de Mariana. “Situações como essa expõem a fragilidade das garantias fundamentais da população quando passam por situações calamitosas. A análise desse caso no relatório busca exatamente contribuir com esse debate, para que os mecanismos de precaução e de resposta sejam mais eficientes, evitando ao máximo violações de direitos como vimos no caso da Samarco, que é controlada pela Vale e pela BHP”. 
Justiça Global é uma organização não governamental de direitos humanos que trabalha com a proteção e promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da sociedade civil e da democracia. Nesse sentido, nossas ações visam denunciar violações de direitos humanos, incidir nos processos de formulação de políticas públicas baseadas nos direitos fundamentais, impulsionar o fortalecimento das instituições democráticas, e exigir a garantia de direitos para os excluídos e vítimas de violações de direitos humanos.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Zygmunt Bauman: “O mercado é brutalmente incapaz de reparar os danos que causa”

Passando pelo Brasil,Zygmunt Bauman concedeu uma entrevista ao jornalista Marcelo Lins, do programa Milênio, em que fala sobre as mudanças ocorridas ao longo do século XXI e suas perspectivas do futuro. As informações são do ConJur.
Houve um tempo em que conceitos eram sólidos. Ideias, ideologias, relações, blocos de pensamento moldando a realidade e a interação entre as pessoas. O século XX, com suas conquistas tecnológicas, embates políticos e guerras, viu o apogeu no declínio desse mundo sólido. A pós modernidade trouxe com ela a fluidez do líquido, ignorando divisões e barreiras, assumindo formas, ocupando espaços, diluindo certezas, crenças e práticas. A oposição entre o mundo sólido e o mundo líquido é criação da mente brilhante de Zygmunt Bauman, sociólogo professor da London School of Economics e um dos mais respeitados intelectuais da atualidade. Prestes a completar 90 anos, Bauman guarda vivas as memórias da Polônia natal, do período que passou na União Soviética, da luta na Segunda Guerra Mundial e da consagração como acadêmico no Ocidente. Guarda também a inquietação que marca sua trajetória e aparece nos mais de 50 livros que escreveu. Guarda ainda o inconformismo de quem já foi vítima do anti-semitismo e do stalinismo, e sempre questionou as desigualdades e as injustiças da sociedade de mercado. Em recente passagem pelo Brasil, onde foi a estrela do eventoComunicação 360, Bauman conversou com o Milênio no Rio de Janeiro.
Marcelo Lins — O senhor viveu tempos difíceis no século 20, como a Segunda Guerra Mundial e a ascensão e a queda do comunismo, para mencionar dois exemplos. Qual acha que é a principal característica deste início de século 21?
Zygmunt Bauman — Este século é muito diferente do século 20. Se compararmos o que eu vivenciei quando jovem, cheio de esperanças e expectativas, com o que vivencio agora, em retrospecto, comparando, revisando expectativas e esperanças, eu diria que estamos num estado de interregno. Esse é o termo que gosto de usar. No “interregno”, não somos uma coisa nem outra. No estado de interregno, as formas como aprendemos a lidar com os desafios da realidade não funcionam mais. As instituições de ação coletiva, nosso sistema político, nosso sistema partidário, a forma de organizar a própria vida, as relações com as outras pessoas, todas essas formas aprendidas de sobrevivência no mundo não funcionam direito mais. Mas as novas formas, que substituiriam as antigas, ainda estão engatinhando. Não temos ainda uma visão de longo prazo, e nossas ações consistem principalmente em reagir às crises mais recentes, mas as crises também estão mudando. Elas também são líquidas, vêm e vão, uma é substituída por outra, as manchetes de hoje amanhã já caducam, e as próximas manchetes apagam as antigas da memória, portanto, desordem, desordem.
Marcelo Lins — Acha correto dizer que hoje recebemos informação demais, que não somos capazes de absorver todas elas? Temos acesso mas não sabemos o que fazer com ela?
Zygmunt Bauman — Você tem toda a razão. Colocou o dedo na parte mais dolorosa de nossa ferida. Como E. O. Wilson, o grande biólogo, expressou de forma muito sucinta e correta: “Estamos nos afogando em informações e famintos por sabedoria.” Não temos tempo de transformar e reciclar fragmentos de informações variadas numa visão, em algo que podemos chamar de sabedoria. A sabedoria nos mostra como prosseguir. Como o grande filósofo Ludwig Wittgenstein dizia: “Compreender é saber como seguir adiante.” E é isso que estamos perdendo. Não sabemos como prosseguir.
Marcelo Lins — O senhor mencionou o fracasso de nossas instituições políticas: os partidos, a representatividade, que é falha no mundo todo. O senhor testemunhou o fracasso do sonho comunista na Polônia e na União Soviética. Qual foi o maior erro do comunismo?
Zygmunt Bauman — O comunismo se encaixava nas medidas do século 19. O século 19 foi um período de grande otimismo. Em primeiro lugar, as pessoas estavam convencidas — e tinham orgulho disso — de que, com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, seria possível refazer o mundo, virá-lo de cabeça para baixo. Era uma relação leve e despreocupada com a realidade. A realidade existia para ser reciclada, modificada, aperfeiçoada etc.. Essa era uma coisa. A outra era a visão do caminho futuro, da estrada para a sociedade perfeita. Todos estariam trabalhando. Foi o período da revolução industrial. No final, todos se tornariam trabalhadores. Uma boa sociedade na grande fábrica com funcionários satisfeitos. Era o período da modernidade sólida e da sociedade industrial. Hoje vivemos na modernidade líquida e na sociedade pós-industrial do consumismo, e a passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo foi uma coisa muito poderosa e importante. Mudamos o foco da construção das bases do poder da sociedade sobre a natureza para o contrário: para a cultura do imediatismo, do prazer, da individualização… de identificar a visão da felicidade com o aumento do consumo… Todos esses fenômenos novos pegaram o comunismo totalmente despreparado.
Marcelo Lins — Se existe um consenso, e acho que podemos dizer que existe o consenso de que o comunismo perdeu essa guerra específica e o capitalismo venceu, sabemos que essa vitória trouxe, de certa forma, alguns fracassos. Faltam soluções para vários problemas. Quais são os maiores problemas da sociedade de mercado na sua opinião?
Zygmunt Bauman — As pretensões do comunismo fora da Cortina de Ferro forçou o capitalismo a limitar suas próprias propensões destrutivas, mantendo a desigualdade social dentro de limites aceitáveis, sem perder o controle sobre ela, e criando leis para garantir direitos aos empregados, não só aos empregadores. A ideia da desregulamentação do mercado de trabalho, por exemplo, seria impensável, simplesmente porque havia um concorrente, que não era cuidadoso e fazia propaganda. Não era fácil. Aí, de repente, tudo passa a ser possível. Ninguém o vigia. Você pode fazer o que quiser, pode usar todos os recursos que possui para promover seus interesses, e isso é potencialmente catastrófico. A falta de autolimitação é o que está acontecendo agora. Além disso, a primeira reação após a introdução do ideal neoliberal de sociedade por Margaret Thatcher e Ronald Reagan foi que tivemos 30 anos do que chamo de orgia consumista: gastamos um dinheiro que não tínhamos, tínhamos esperança de que o futuro reembolsaria o que estávamos pegando emprestado, e isso terminou, como você bem sabe, em 2007/2008, com a crise de crédito. Agora estamos novamente no ponto de partida.
Marcelo Lins — Um dos maiores problemas desse novo ponto de partida é a desigualdade. O senhor escreveu muito sobre isso, e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, apesar de ser um país rico. Aparentemente, está claro que a riqueza de poucos não beneficia a todos. Como equilibrar melhor essa equação numa democracia?
Zygmunt Bauman — A desigualdade não está apenas aumentando, ela muda sua natureza, sua estrutura e está ligada a esses limites que o capitalismo se impõe para manter as coisas em ordem, digestíveis, toleráveis, aceitáveis. Eles desapareceram e, como resultado, a desigualdade mudou sua natureza porque as vítimas da desigualdade da sociedade eram, antigamente, as pessoas que viviam na pobreza, na base da sociedade, os párias da sociedade. Hoje não é mais assim, porque estamos testemunhando o processo que Guy Standing, um sociólogo muito ativo, chamou de “precariado”. O que chamamos de classe média, que era a parte da sociedade mais bem sucedida e confiante, está se transformando muito rapidamente no precariado, que é uma espécie de equivalente ao antigo proletariado: pessoas que estão inseguras em relação à sua posição. De acordo com as últimas teses dos economistas — pessoas que estudam o assunto melhor do que eu e calculam as estatísticas —, não é mais uma questão dos 25% mais ricos da população e dos 25% mais pobres, mas do conflito entre o 1% que está no topo e os 99% do resto da sociedade. Não sei se você notou que a riqueza dos Estados Unidos após a crise de crédito… Houve alguma recuperação, e o valor agregado da riqueza dos EUA aumentou depois da crise, mas 94% desse valor agregado ficou com 1% da população. Todo o resto teve que dividir os outros 6%.
Marcelo Lins — Mas, mesmo mostrando esses números impressionantes, ainda há economistas, jornalistas e analistas dizendo que o mercado pode regular até a desigualdade, que se deixarmos o mercado funcionar livremente, vamos melhorar em algum momento. Como rebateria esse argumento?
Zygmunt Bauman — O mercado é explícito e brutalmente incapaz de reparar os danos que causa. Ele cria problemas, mas não consegue resolvê-los. Não consegue resolvê-los. Para isso, é necessário um outro tipo de instituição. O mercado é poder puro liberado de qualquer limitação. Poder significa a habilidade de realizar coisas. O mercado é ótimo nisso, em criar demanda para seus produtos, em distribuir fundos do Brasil para a África, porque a mão de obra lá é mais barata… Ele tem um poder real, que pode influenciar as suas condições de vida, a de seus filhos, de seus netos, de seus bisnetos que ainda não nasceram… Isso ele faz, mas o poder sem controle é algo muito perigoso. Ele traz lucros transitórios para algumas pessoas, mas traz muitos problemas para a grande maioria. Para manter o poder sob controle e evitar que o mercado se autodestrua, a política é necessária. A política é a habilidade de decidir quais coisas devem ser feitas.
Marcelo Lins — Vamos falar sobre conflitos, sobre a crise e a reação a essa crise. Estamos vivendo a crise dos refugiados. Ela começou como a crise dos imigrantes ilegais, como se chamava no início, mas logo percebemos que se trata de uma crise de refugiados. Como analisa a reação das potências mundiais a essa crise?
Zygmunt Bauman — Não se trata de um evento único, nem é novidade. A novidade é a atenção dedicada ao assunto, porque ele foi dramatizado, em parte com a ajuda da cobertura televisiva, quando vimos a criança morta na praia e aquilo que aconteceu em Lampedusa, quando centenas de pessoas se afogaram em embarcações sucateadas. Mas a migração em massa acompanha a era moderna desde o início. O Brasil, por exemplo, é produto da migração em massa. Pessoas vieram da Itália, da Espanha e de Portugal para cá para criar uma vida própria. Por que vieram? Porque procuravam trabalho, água potável, condições decentes de vida, coisas que não tinham em seus países. A reação da Europa tem um impacto duplo. Por um lado, as empresas têm interesse em assimilar essas pessoas. Sua força de trabalho. Elas lucrariam mais, para resumir. Por outro lado, existe a reação esperada do medo de estranhos. “Eles estão chegando para tumultuar. Vamos nos afogar, eles vão inundar nossas cidades.” Os empregados, e não os empregadores, os enxergam como concorrentes que provocarão o arrocho de seus salários. Eles serão usados pelos patrões para rejeitar as demandas dos empregados atuais, que podem ficar sem emprego. São duas pressões diferentes novamente.
Marcelo Lins — Mudando de assunto, já que nossa conversa está chegando ao fim. Neste mundo hiperconectado, no qual qualquer tipo de informação está a um clique no seu computador, qual é o papel da educação tradicional nas escolas e nas universidades? E também do jornalismo tradicional, se podemos chamar assim?
Zygmunt Bauman — Novamente, você mencionou um dos problemas mais importantes e dolorosos de nossos dias. Acho que a educação tem um papel tremendamente importante. Na situação atual, gosto de me referir a um ditado chinês da época de Confúcio. Ele diz que se você planeja para um ano, semeie milho. Se planeja para dez anos, plante uma árvore. Se planeja para 100 anos, eduque as pessoas. É disso que estamos nos esquecendo hoje. Nosso sistema educacional atual é uma das vítimas do que mencionei antes: a cultura do imediatismo. Educação e imediatismo são termos contraditórios. Não se pode ter os dois. Ou se tem uma educação de qualidade ou se tem o imediatismo. Não dá para ter os dois ao mesmo tempo. E este é um problema terrível. Na história da sociedade humana, assim que os gregos antigos inventaram o conceito de paideia, a educação viveu constantemente algum tipo de crise, porque as circunstâncias mudavam e ela tinha que se ajudar às novas informações. Mas essa crise é muito básica e essencial. Você mencionou o contexto da tecnologia da informação, que é uma biblioteca de fragmentos, de pedacinhos, sem algo que os reúna e os transforme em sabedoria, em conhecimento.
Marcelo Lins — E o fluxo é enorme.
Zygmunt Bauman — E isso destrói certas capacidades psicológicas, como atenção, concentração, consistência e o chamado pensamento linear, quando você estuda um assunto de forma consistente, e o esgota, vai até o fim. Há mudanças na psique humana, é uma situação completamente nova, que põe os educadores numa posição muito difícil. Eles precisam repensar muitas coisas.
Marcelo Lins — Numa tentativa de não terminar nossa conversa de forma triste, o que lhe traz esperança quando olha em volta? Que iniciativas, projetos e coisas estão sendo feitas que lhe dão esperança no futuro da humanidade?
Zygmunt Bauman — Quanto mais envelheço, mais amplio a perspectiva na qual baseio minha avaliação da situação. Primeiro eu me concentrei em alguns excessos da modernidade, depois passei a analisar a lógica ou a falta de lógica da modernidade líquida. Foram estudos limitados pela perspectiva histórica, mas se eu… O que vou dizer não é invenção minha, mas sou pessimista em relação ao curto prazo e otimista em relação ao longo prazo. Porque, quando analisamos a história a humanidade, apesar da nossa tendência de esquecer a História, da crise da memória histórica, apesar disso, a história da humanidade é animadora. Ela era muito mais cruel e sórdida antes. É muito menos cruel e sórdida agora, apesar de tudo de terrível e ultrajante que acontece. E houve muitas crises na história da humanidade, muitos períodos de interregno, nos quais as pessoas não sabiam o que fazer, mas elas sempre acharam um caminho. A minha única preocupação é o tempo que levarão para achar o caminho agora. Quantas pessoas se tornarão vítimas até que a solução seja encontrada? Essa é minha única preocupação.
FONTE: ConJur