da Reporter Brasil
Piero Locatelli 20/06/2016
Bolivianos
trabalhavam mais de 12 horas por dia e viviam em condições degradantes em
oficina quarterizada. Empresa foi responsabilizada por trabalho análogo ao
escravo
O mesmo tecido que estampa a capa da
página da Brooksfield Donna no Facebook estava sobre mesas de uma precária
oficina de costura na zona leste de São Paulo no começo de maio. Na rede
social, o tecido vestia o corpo de uma modelo loira, magra e alta. Na periferia
de São Paulo, ele era costurado por cinco bolivianos que trabalhavam ao menos
12 horas por dia, sete dias por semana, e moravam dentro do local de trabalho.
A Brooksfield Donna, marca feminina de
luxo do grupo Via Veneto, produziu peças com mão de obra análoga à de escravo, de acordo com auditoria do Ministério
do Trabalho e Previdência Social realizada no dia 6 de maio. A empresa nega ter
qualquer responsabilidade sobre os trabalhadores encontrados.
Na casa onde a oficina estava
instalada, não havia extintores de incêndio, as instalações elétricas eram
precárias e improvisadas, e o chão acumulava pilhas de tecidos, formando um
cenário de fácil combustão onde a única porta de saída permanecia trancada.
Um dos cinco trabalhadores era uma adolescente de 14 anos. Dentro
da oficina, os fiscais encontraram outras duas crianças.
O forte odor também escancarava as
condições precárias de higiene, segundo os auditores fiscais. A ausência de
papel higiênico, colchões dentro da cozinha e a falta de limpeza do local
também agravavam a insalubridade. Segundo os auditores, “as condições de
segurança e saúde eram inexistentes, tanto nos locais de trabalho, como nos
locais de moradia.”
Um dos cinco trabalhadores era uma
adolescente de 14 anos, filha do dono da oficina, Felix Gonzalo, que também foi
encontrada na mesma situação. Segundo os auditores, a adolescente não
poderia trabalhar porque a costura é uma das atividades econômicas onde é
proibida a contratação de trabalhadores menores de 18 anos. O trabalho com
instrumentos perfurantes, como a máquina de costura, está entre “as piores
formas de trabalho infantil”, que o Brasil se comprometeu a eliminar até 2016.
Dentro da oficina, os fiscais
encontraram outras duas crianças. Elas moravam com as mães, que passavam
quase todo o tempo sobre as máquinas de costura. A demanda das crianças por
cuidados agravavam os riscos de acidente em um trabalho que exige concentração
e em um ambiente onde as máquinas não tem nenhum tipo de isolamento.
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Etiquetas
da Brooksfield Donna na oficina onde os trabalhadores foram encontrados. Foto:
MTPS |
Via Veneto comandava produção
Embora todas as peças produzidas por
essa oficina fossem para a marca Brooksfield Donna, o local era um fornecedor
“quarterizado” da Via Veneto, ou seja, uma empresa subcontratada por outra
companhia terceirizada pela marca. Esse tipo de prática é um elemento comum nas
redes que exploram o trabalho escravo. Uma empresa intermediária, a MDS
Confecções, recebia as encomendas e as repassava à confecção de Gonzalo, que
costurava as peças exclusivamente para a Brooksfield Donna. Cada
costureiro recebia, em média, R$6,00 por peça costurada. Roupas da mesma
coleção feita na oficina chegava a custar R$ 690,00 em lojas
visitadas pela reportagem. Mesmo se um trabalhador costurasse 293 horas
por mês, mais de catorze horas por dia útil, sua remuneração estaria abaixo do
piso salarial da categoria, de R$ 1.246,50 mensais.
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Detalhe
de blusa costurada na oficina onde foi encontrado trabalhadores em condição
análoga à de escravo. Foto: MTPS |
A empresa alegou aos auditores que não
possui nenhuma relação com os trabalhadores. Questionada pela reportagem, a Via
Veneto afirma que não terceiriza seus serviços, e que “não mantém e nunca
manteve relações com trabalhadores eventualmente enquadrados em situação
análoga a de escravos pela fiscalização do trabalho” (Leia a íntegra da nota).
Cada costureiro recebia, em média,
R$6,00 por peça costurada. Roupas da mesma coleção feita na oficina chegava a
custar R$ 690,00 em lojas visitadas pela reportagem.
A Via Veneto, porém, controlava todo o
processo de produção e confecção segundo os auditores fiscais do
trabalho. Era ela quem definia prazos, quantidades e os modelos das
roupas. A empresa também estabelecia o preço pago à confecção, arbitrado na
elaboração de “peças-pilotos”, os modelos a serem seguidos pelas costureiras
nas oficinas. Além disso, o pagamento dos trabalhadores pelas empresas só era
feito após a Via Veneto receber as encomendas.
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Detalhes
das peças encomendadas pela Brooksfield, em mural na MDS. Foto: MTPS |
A empresa também permitiu
que a MDS, contratada por ela, terceirizasse a produção para outras empresas, o
que reduz ainda mais os custos. Outras marcas que contratam a empresa para
produzir roupas, como a Le Lis Blanc e a Animale, produzem as suas peças dentro
da própria MDS, segundo a auditoria. A reportagem tentou entrar em contato com
a MDS, mas não obteve resposta da empresa. Questionada pela Repórter Brasil, a
Brooksfield não respondeu as perguntas sobre sua relação comercial com a MDS.
Leia mais:
“Sem trabalho e em situação famélica”
Os trabalhadores encontrados continuam
em uma situação de extrema fragilidade devido à postura da Brooksfield diante
dos problemas. “A empresa demonstra uma falta de vontade de resolver uma
situação básica, de dignidade básica do trabalhador,” diz Lívia Ferreira,
auditora fiscal que coordenou a fiscalização. “[A Via Veneto] não teve nem uma
humanidade mínima de pagar para cinco trabalhadores valores que nem são altos.”
A empresa deveria pagar entre R$ 1.062,99 e R$ 4.156,39 mil para cada
trabalhador, totalizando R$ 17.688,55 para todos os cinco.
“[A Via Veneto] não teve nem uma humanidade mínima de pagar para cinco
trabalhadores valores que nem são altos.” A empresa deveria pagar R$ 17.688,55
para todos os cinco trabalhadores.
A postura do grupo Via Veneto é
distinta da maioria das empresas que foram flagradas com trabalho escravo nos
últimos anos, e demonstraram alguma colaboração na tentativa de sanar as
demandas urgentes dos trabalhadores logo após a fiscalização. Marcas como Le
Lis Blanc e Luigi Bertolli aceitaram tomar medidas emergenciais, apesar de se
defenderem das acusações de trabalho escravo em momento posterior. Ao negar o
auxílio, a Via Veneto argumentou ao Ministério Público do Trabalho que “não é
responsável por nenhuma das pessoas” do inquérito que investiga o caso.
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Trabalhadores
não receberam auxílio da Brooksfield, o que os deixa em uma situação de extrema
fragilidade. Foto: MTPS |
A postura de negação do problema coloca a Via Veneto entre os grupos
mais atrasadas no combate ao trabalho escravo, um problema enraizado no DNA do
setor têxtil do Brasil e do mundo. Admitir que a escravidão existe é apenas o
primeiro passo para uma série de mudanças necessárias e urgentes no combate a
esse tipo de exploração. Entre outras medidas a serem tomadas, estariam a
transparência aos clientes sobre seus fornecedores e o monitoramento das
condições de trabalho nessa cadeia.
Como a empresa sequer tomou o primeiro
passo nesse sentido, agora quatro dos trabalhadores encontrados na oficina só
estão recebendo o seguro desemprego no valor de um salário mínimo.Já a
adolescente está numa situação de vulnerabilidade ainda maior, já que esse
benefício não é previsto para os casos de trabalhadores com essa idade.
Segundo o relatório dos auditores fiscais, enquanto a postura da empresa não
mudar, esses trabalhadores devem continuar “sem trabalho e em situação
famélica”.