“Desde o princípio,
a Grã-Bretanha declarou que entrava na União Europeia não para compartilhar um projeto
comum, mas por interesses econômicos. A partir de então, foi colocando
obstáculos ao melhor da União Europeia:
conseguiu que, na chamada Constituição, as normas de economia liberal fossem
obrigatórias e as de justiça social apenas recomendações; e assim é impossível
construir uma verdadeira união”, escreve José Ignacio González Faus,
teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital,
24-06-2016. A tradução é de André Langer.
Eis
o artigo.
Inevitavelmente, o Brexit me fez pensar nas leituras do Livro dos Reis, da liturgia destes dias: “Jerusalém
nunca será tomada. Deus a protege”. Enquanto isso, o povo seguia sendo infiel e
seus profetas ameaçavam que as coisas poderiam acabar mal. E, finalmente, foi o
que aconteceu: nada pôde contra nós o Senaquerib grego,
mas sim o Nabucodonosorbritânico... Os judeus
não acreditaram. Mas, ao final, tiveram a sensatez de reconhecer que, por mais
criminoso que fosse o rei da Babilônia, também
eles tinham boa parte de culpa nos acontecimentos que se precipitaram sobre
eles.
Poderíamos nós reagir de uma maneira
semelhante? Vamos tentar.
Para começar: se a Europa abandonou a União Europeia há tempos,
também não é de se estranhar que hoje a Grã-Bretanha a abandone.
Mesmo que não o reconheçam, os temores do
sr. Juncker e sua laia não são simplesmente medos
econômicos: ao final das contas, segundo dizem os técnicos, será pior para
a Grã-Bretanha. O que deixa desgostosos os atuais
ditadores europeus é que se ponha de relevo que não há nada de emocionante
na Europa que eles estão construindo e desfigurando.
A história mostra que quando aparecem tsunamis
nacionalistas simultâneos em vários lugares, são sintomas não de um suposto
sentimento pátrio, mas de um descontentamento mais radical e profundo: são
comparáveis àquilo que Ignacio Ellacuría chamava de “análise de
fezes”, que pode refletir que algo funciona bastante mal em nossas vísceras.
Para mim, esse algo é simplesmente a justiça econômica.
Desde o princípio, a Grã-Bretanha declarou que entrava na União Europeia não para compartilhar um projeto
comum, mas por interesses econômicos.
A partir de então, foi colocando obstáculos ao
melhor da União Europeia: conseguiu que, na
chamada Constituição, as normas de economia liberal fossem obrigatórias e as de
justiça social apenas recomendações; e assim é impossível construir uma
verdadeira união. Foi jogando, além disso, para conseguir benefícios pessoais
para ela só se quiséssemos que ela ficasse... A verdade é que, nessas
condições, é melhor não ficar.
Permito-me recordar (para não ser mal
interpretado) que, há quase 50 anos, escrevi sobre Londres que há muitas coisas admiráveis no
“british” e que seria uma pena se a Europa as
perdesse. Mas, o admirável britânico são coisas como a Carta Magna ou figuras
como Shakespeare. Não personagens como a senhora
Thatcher, Tony Blair ou Nigel Farage.
Um último ponto deve ficar para a reflexão dos
políticos e juristas.
Não sei quem disse que os referendos sempre
são vencidos pelo diabo (de fato, Franco sempre
os ganhou). Mas me surpreende que se, para mudar uma Constituição, são
necessários maioria de três quintos, para algo ainda mais sério, como uma
ruptura entre países, basta maioria simples: porque diferenças de 51% e 49% são
muito oscilantes, podem mudar de acordo com a direção do vento, e será normal
que quem hoje perdeu esse referendo, tente repeti-lo amanhã com a esperança de
ganhá-lo então e sem levar em conta que os perdedores de amanhã poderão pedir
para repeti-lo depois de amanhã. O caso da Escócia ilustra
isto. Mas, naturalmente, estas coisas não podem ser legisladas quando já “se vê
o lobo chegando”, mas essas coisas devem ser decididas e estar estabelecidas
muito antes.
Este é outro ponto sobre o qual me parece que
deveríamos refletir.
Agora, com ou sem Brexit, não esqueçamos que por mais que as fronteiras
políticas, sempre contingentes, possam nos separar, une-nos mais a condição de
seres humanos e (dito de maneira cristã) de irmãos como filhos de um mesmo Pai.
FONTE: IHU
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