Dom Vicente Ferreira* - Bispo auxiliar da
Arquidiocese de Belo Horizonte, em seu artigo reflete sobre a realidade de Brumadinho, a partir do crime da Vale, e afirma: "O que impera, aqui, de fato, é o interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias."
Segue o artigo,
Segue o artigo,
A carta
Encíclica Laudato Sì, do Papa Francisco, é um corajoso e bem fundamentado
documento sobre ecologia integral. A partir de uma importante leitura das
formas insustentáveis de exploração do meio ambiente, o texto propõe, à luz da
fé cristã, uma conversão ecológica. Dramas agudos como o aquecimento global, a
devastação da biodiversidade, a poluição do ar e das águas, impõem sobre o
planeta violentos cenários de destruição e, sobre os pobres, caminhos sem
esperança de sobrevivência. Com tudo isso, crimes como os de Mariana e de Brumadinho
são fatos isolados, acidentes de percurso, ou revelam uma forma global de
extrativismo que recolhe o lucro e socializa a morte? Basta, apressadamente,
pensar em medidas de reparação para cada caso, ou buscar um novo pacto global
pela Casa Comum?
Desde o dia 25
de janeiro de 2019, data do crime da Vale com o rompimento da Barragem da Mina
Córrego do Feijão, testemunhamos um luto e uma luta que fazem pensar elementos
de respostas a essas perguntas. Primeiramente, o município é um caso concreto
da minério-dependência. Mesmo com a trágica situação pós-crime, defender a
narrativa dos atingidos é uma tarefa árdua, o que nos fez cunhar a expressão 25 é todo dia. A mineração que matou,
negocia o que será reparado. Isso denuncia o estilo de um extrativismo colonialista,
disfarçado em proposta de desenvolvimento. O que impera, aqui, de fato, é o
interesse de uma multinacional e de seus acionistas, mesmo que para isso seja
necessário burlar leis, comprar o Estado, usar maquiagens nas mídias. Em
segundo lugar, a repetição de uma engenharia criminosa, faz pensar que o
rompimento de barragens é, infelizmente, um caso previsto; parte de um processo
minerário. As placas com rotas de fuga mostram o cinismo da busca do lucro
acima da vida. Trata-se, portanto, de crimes anunciados, realizados e
prolongados. A grande devastação socioambiental serve, também, para que a
mineração continue ocupando o território com ares de domínio e poder. Em
terceiro lugar, pensar em caminhos alternativos esbarra em resistências fortes
de um modelo que dominou até mesmo a autonomia do pensar. Não é tarefa fácil
problematizar a mineração em territórios como Brumadinho e, o retorno dos
trabalhos da Mineradora, em Mariana, é prova real disso.
Diante
desses pontos, há um grande trabalho de resistência protagonizado por algumas
forças da Igreja local. Movimentos que levam a sério o pedido do Papa Francisco
para que sejamos uma Igreja em saída. A articulação das comunidades ao longo de
um ano pós-crime, possibilitou a formação de um coletivo dos atingidos. Nele,
há um trabalho que une denúncia e anúncio, que liga espiritualidade e grito
pela justiça. Um espaço de afeto, humano e ecológico, que o capital não domina.
Dar voz às vítimas também não se faz sem a memória das 272 mortes, incluindo as
que ainda não foram encontradas. E, como tudo está interligado nessa Casa
Comum, fica claro que falar de crise ecológica é reconhecer que o horizonte da
ética, do que o ser humano elege como seu novo deus, o dinheiro, não são coisas
separadas uma da outra. Voltar o coração para a vocação central de cuidadores
do planeta, deve fazer as comunidades locais e internacionais pensarem em
limites e possibilidades da relação do homem com o universo.
Os caminhos
alternativos passam pela proposta de uma conversão ecológica que deve assumir
aspectos individuais e coletivos. Vencer a genética consumista da
contemporaneidade se dará pela busca de uma vida mais simples, assumindo
posturas que estão na contramão da cultura do descarte. Para isso, a
valorização da agricultura familiar, das pequenas empresas, dos artesanatos,
das tradições das comunidades quilombolas, do ecoturismo não são propostas
inalcançáveis. Pelo contrário, elas já existem e sustentam a defesa de uma
geografia que não possui somente minério, mas sobretudo água, tradições,
religiosidade, mantidas por tantos atores locais. Vale lembrar, que tais atores,
muitas vezes, são criminalizados pela força de sua resistência e nem sempre
participam dos circuitos oficiais da sociedade ou da própria dinâmica eclesial.
Desse modo, é louvável a primeira romaria da Arquidiocese de Belo Horizonte
pela Ecologia Integral a Brumadinho, dia 25 de janeiro de 2020, como grito e
súplica de tantos que sonham por um mundo novo.
Enfim, fica
claro que a Igreja não possui um partido político, mas, sem dúvida, é uma voz
política porque denuncia a exclusão e propõe a construção de uma sociedade de
paz, que não será alcançada sem justiça. Seu partido é o Evangelho, que não
pode ser rasgado em nome de nenhum interesse que coloque o lucro acima de tudo
e a lama em cima de todos. Se, num primeiro momento, fomos firmes na acolhida
solidária, hoje, é mais do que justo, que debatamos também modelos políticos de
condução de nossa região que não estejam atrelados ao monopólio das mineradoras.
Nesse caso, não basta a caridade assistencial. De algum modo, também nós
cristãos temos que sanar a esquizofrenia que há entre fé e vida, entre crer com
as palavras e não agir para mudar estruturas econômicas perversas. O caminho a
percorrer é longo, mas a esperança é grande. É bem provável que estejamos
participando de uma nova revolução e ela é socioambiental. Até quando? Até
sempre!
*Dom Vicente Ferreira - Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, responsável por Brumadinho e região
FONTE: IHU
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