por Rudá Ricci*.
Uma das clarezas que estamos tendo com a pandemia é sobre o perfil de nossa gente, os traços da personalidade dos brasileiros. A pesquisa Datafolha indicando queda de apoio ao isolamento (de 52% para 44% ao longo de abril) nos diz muito.
Somos um povo ansioso, pouco afeto ao planejamento. Séculos de profunda desigualdade nos interditaram a possibilidade de planejarmos. De um lado, os mais pobres que não têm sobras para pensar no futuro. Restam o misticismo e a fé cega no futuro mágico.
Do outro lado, a porção nababesca do Brasil, que não precisa planejar porque tem um séquito à sua disposição e sempre um capetão a postos para fazer o jogo sujo. Afinal, para que pensar no país, se este território é todo seu?
E temos os "ascendentes". A ascensão social não é fato comum porque nossa mentalidade é estamental, vivemos em castas. Mas, há sempre aquela torcida para subirmos de casta. Neste caso, surge a torcida "ostentação". Gente que anda como siri, mas se apresenta como um "Beto Rockfeller". Parada para explicar para quem tem menos de 50 anos. Beto Rockfeller foi uma novela produzida pela Rede Tupi e exibida de 1968 até 1969, às 20 horas. Foi um tremendo sucesso. Beto era um vendedor de sapatos que inventa um avatar que se diz primo em terceiro grau dos Rockfeller. Agora eu sei o motivo de tanto sucesso desta novela da Tupi: Beto Rockefeller é o sonho dourado de tanta gente de classe média baixa ou pobre: poder viver a vida que nunca terá. Ao menos, alguns minutos de fartura.
Pois bem: somos ansiosos porque nunca conseguimos nos encarar no espelho. Preferimos olhar o futuro mágico. Esta necessidade de voltar "à normalidade" é a crença que todo esforço será recompensado. Mas, em casa, a sala e o banheiro mais ou menos acabam estampando o que sou.
Aliás, a tal "normalidade" nada mais é que um corredor, um local de passagem para o futuro mágico. Somos uma nação que foge para o futuro permanentemente. Ora, este é o ideário que está plantado nas favelas, segundo duas pesquisas já patrocinadas pela Central Única de Favelas. Os moradores de favela desconsideram qualquer governo e acham que qualquer melhora na sua vida se deve à Deus, à sua família (que sempre está ao seu lado) e ao seu próprio esforço. Fico imaginando o que significa a desgraça atual. Talvez, agora apareça o governo como algoz.
Então, ficamos nesta tentação da ostentação, o que nos leva à idolatria, outra marca dos brasileiros. A necessidade de ídolo é a de transferência da realização do sonho pessoal para alguém com poder que se torna íntimo na minha imaginação. A sua vitória é a minha. A sua morte é a minha. Uma encarnação. A idolatria chega a ser uma desforra: eu sou "próximo" (na imaginação) de tal ídolo e, portanto, minha opinião é correta. Daí a briga de vida ou morte entre aqueles que não ganham nada, mas defendem seus ídolos com sua alma. É a projeção de quem não confia em si mesmo.
Ora, se não confio em mim, melhor confiar no ídolo ou no futuro mágico. E, assim, vamos nos enterrando como nação. O andar de cima diz: "que morram muitos pobres para passar logo a epidemia". O andar de baixo afirma: "tenho corpo fechado e se não trabalhar, não ostento".
Exatamente quando chegamos a ultrapassar a China em número de mortes. Exatamente quando a morte chega nas periferias e no interior do país. Não interessa.
Afinal, somos bonitos por natureza. Que belê!
* Rudá Guedes Ricci - Sociólogo, mestre em ciência política e doutor em ciências sociais pela Unicamp. Presidente do Instituto Cultiva. Da coordenação da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco (ABEF) e do Pacto Educativo Global no Brasil.
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