segunda-feira, 27 de julho de 2020

Nota de Adesão da Família Franciscana à Carta dos Bispos Católicos ao Povo de Deus

Nota de Adesão da Família Franciscana à Carta dos Bispos Católicos ao Povo de Deus

Brasília, 27 de julho de 2020.
“Quem amaldiçoa um pobre prejudica a Cristo, cuja nobre imagem ele veste, a imagem daquele que se fez pobre por nós neste mundo” (1Cel 76). 
São Francisco de Assis
A Conferência da Família Franciscana do Brasil - CFFB e o Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia - SINFRAJUPE, entendendo a gravidade da situação política em que vivemos, agradecem e acolhem a CARTA AO POVO de DEUS, assinada por mais de 150 Bispos, se posicionando contra o governo de Jair Bolsonaro. Comungamos com a dimensão profundamente cristã dessa mensagem e nos somamos ao seu apelo profético. É de participar de “um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com ‘terra, teto e trabalho’, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos.”
De forma lúcida, os Bispos dizem que: “Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises.” [...] “O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma ‘economia que mata’ (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço”. 
Os Bispos em sua função pastoral, nos lembram que “Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.”
No espírito de Francisco e Clara de Assis, nós franciscanos e franciscanas, reafirmamos o compromisso pela busca de uma vida que promova e defenda a justiça, os direitos humanos e nossa Casa Comum, o planeta. Convidamos a todas as pessoas, no espírito da convocação da carta dos Bispos, a nos unirmos na construção da Justiça, da Paz e da Integridade da Criação.

                   Ir. Cleusa Aparecida Neves, CFA
                                  Presidente
                 Conferência da Família Franciscana
                              do Brasil – CFFB
                               SINFRAJUPE

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Moçambique: Bispo de Pemba alerta para crise humana e cenário de fome em Cabo Delgado

Cabo Delgado, em Moçambique, é uma Província rica em minerais, cujas comunidades vivem um processo de violência e empobrecimento. Um conflito que envolve um extremismo religioso e a riqueza do subsolo. Segundo a ONU já foram mortos cerca de mil pessoas e foram forçadas a se deslocarem mais de 250 mil pessoas. 


O conflito.


Existe um forte vínculo com as questões locais de mineração - a remoção forçada de centenas de mineiros locais de rubis e pedras preciosas levou ao recrutamento ativo na cidade de Montepuez, onde a mineração de rubi ocorre em Cabo Delgado e onde uma seita Islamica está em atividade há muito tempo. Mais do que uma questão religiosa, o cerne do conflito  é o conjunto de questões locais que deixaram os jovens sentindo-se privados de um futuro, de qualquer oportunidade, e vêem um colapso da sociedade e de suas estruturas acontecendo ao seu redor. O grupo insurgente pode estar comprando rubis 'ilegais' de mineradoras locais e vendendo para comerciantes costeiros, bem como ouro de mineradores artesanais e levando para o 'mercado de ouro' de Dar. As elites locais capturaram as lucrativas concessões de mineração e tornaram ilegal que os mineiros artesanais operassem na área. Há muito descontentamento que só está piorando as coisas.


Um conflito que emerge do descontentamento interno - marginalização religiosa, marginalização étnica, captura da elite dos principais recursos locais, corrupção generalizada nos níveis locais, aumentando as economias ilícitas que, naturalmente, se vinculam à corrupção, um governo nacional que apóia as elites locais e os funcionários corruptos do governo local.


Denuncia


O Bispo D. Luiz Fernando Lisboa denuncia as consequências da violência sobre a população. (site Eccleia)


O bispo de Pemba alertou hoje (21 de julho) para a crise humana em Cabo Delgado, norte de Moçambique, onde já existem mais de 250 mil deslocados internos e um cenário de “muita destruição”.
“Em Cabo Delgado está a acontecer uma crise humana. E a essa crise responde-se com solidariedade, com partilha, com comunhão”, referiu à Agência ECCLESIA D. Luiz Fernando Lisboa.
O responsável católico falou das consequências dos ataques na província, primeiro nas aldeias mais recônditas e, desde o início de 2020, nas vilas.
“Ainda continuam, embora nestes dias tenhamos um certo silêncio, mas também isso nos preocupa: das últimas vezes, sempre que tivemos esse silêncio, depois vieram ataques muito fortes”, assinalou.
Para o bispo de Pemba, os ataques resultam da “soma de vários elementos” – como o extremismo religioso e a riqueza do subsolo – e da “situação de abandono em que esta região ficou durante muito tempo, uma situação de pobreza extrema, de falta de políticas públicas”.
Na sua mensagem da Páscoa, em abril, o Papa recordou os ataques terroristas perpetrados contra “tantas pessoas inocentes” em vários países da África, com referência especial à região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique.
“Cabo Delgado entrou no mapa”, assinala D. Luiz Fernando Lisboa, destacando que, deste então, o Governo “intensificou mais a presença” das forças de Segurança.
O prelado pede respostas a “longo prazo”, que vão para lá da ação militar, procurando ajudar “gente que já tem tão pouco e agora ficou sem nada”.
Os ataques são reivindicados pelo grupo ‘jihadista’ Estado Islâmico, atingindo várias vilas de Cabo Delgado (situadas a mais de 100 quilómetros de Pemba), no norte de Moçambique.
A ONU estima que existam 250 mil deslocados internos, num conflito que já matou, pelo menos, mil pessoas.
Os deslocados, indica o bispo de Pemba, “continuam a chegar à cidade, porque as pessoas saem porque foram atacadas ou saem preventivamente”.
Segundo o entrevistado, “praticamente todos os distritos de Cabo Delgado” que não sofreram ataques estão a acolher deslocados, com destaque para a capital, Pemba, e em Metuge, onde chegaram “aldeias inteiras” para os cinco acampamentos que as acolhem.
“Por enquanto ainda é possível dar uma resposta, mas nunca chega para todos”, adverte o responsável católico.
D. Luiz Fernando Lisboa observa que já havia fome antes fome destes ataques, porque a população não tem tido condições de segurança para a sua habitual atividade agrícola.
“Havia fome lá e a fome continua aqui”, acrescenta.
Apesar do esforço das várias organizações católicas de solidariedade, “não há alimentação que chegue, não há maneira de socorrer” todas as pessoas.
O bispo de Pemba, que no domingo visitou os acampamentos, diz que há pessoas sem tendas e a dormir ao relento.
“Dói, no fundo do coração, ver aquela situação, sem ter condições para dar a resposta que gostaríamos, a tanta gente”, confessa.
O prelado considera que o impacto da guerra vai fazer-se sentir durante “muito tempo”, mesmo após o fim da violência, “porque as pessoas saíram com muito medo, estão traumatizadas”.
Uma das prioridades, além da alimentação, é o atendimento psicossocial para as pessoas atingidas.
“Há pessoas que estão paralisadas, com toda a situação que já viveram, não têm forças”, relata.
D. Luiz Fernando Lisboa pede a oração e “solidariedade” para a população do norte de Moçambique, neste momento difícil.
O secretariado português da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre lançou uma campanha de ajuda para Cabo Delgado.
FONTE: ECCLESIA

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Franciscanos/as em Defesa da Vida Contra o Genocídio dos Povos Indígenas

NOTA DE REPÚDIO DO SERVIÇO INTERFRANCISCANO DE JUSTIÇA, PAZ E ECOLOGIA AOS VETOS PRESIDENCIAIS AO PL 1142/2020.

O Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia – SINFRAJUPE, na defesa da vida e da dignidade humana, vem a público manifestar seu repúdio às contínuas políticas genocidas do governo Bolsonaro. Ao vetar dezesseis importantes dispositivos, do Projeto de Lei  nº 1142/2020, aprovado quase por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que dispõem sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas, e estabelece medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais, o governo demonstra seu projeto..
Uma vez mais, os povos indígenas e comunidades tradicionais são violentadas e o presidente Jair Bolsonaro afronta os direitos constitucionais, atentando contra o que reza o artigo 3º, inciso IV: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Reafirma o preconceito e o ódio em relação aos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais.
Os vetos do presidente negam direitos fundamentais, como o de acesso à água potável, bem universal da humanidade; o acesso a leitos de UTI; produtos de higiene; distribuição de alimentos, o da comunicação e informação, e outras medidas fundamentais que garantiriam aos povos indígenas  a viabilização de um plano emergencial para o enfrentamento à Covid-19. Negam, também, o suporte às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais povos e comunidades tradicionais.
Os vetos do governo Bolsonaro explicitam e reafirmam o seu desprezo pela proteção dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Entre os povos indígenas, são mais de doze mil indígenas infectados pela Covid-19, mais de quatrocentos óbitos, e cento e vinte dois povos indígenas afetados.
Repudiamos os argumentos falaciosos usados pelo governo para os vetos, de falta de orçamento para viabilizar as medidas emergenciais. Uma vez que o Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2020 conhecida como “Orçamento de Guerra”, que autoriza os gastos necessários para combater a crise gerada pela pandemia da Covid-19.
Por fim, repudiamos todas as medidas e ações do governo, em detrimento da Constituição Federal e dos Acordos Internacionais, que expõe ainda mais os territórios dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Estas ficam à mercê das invasões de madeireiros, garimpeiros, grileiros e a acelerados desmatamentos em terras indígenas e Unidades de Conservação. Todas estas iniciativas visam liberar terras para grupos econômicos, legitimando a ação do crime organizado, que se sentem amparados pelo Estado Brasileiro.
O SINFRAJUPE reitera seu apoio incondicional aos povos indígenas e às populações tradicionais do Brasil, no seu direito à vida, à terra e às políticas públicas. A “vida está acima da economia”!
São Paulo, 10 de julho de 2020

Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia - SINFRAJUPE
da
Conferência da Família Franciscana do Brasil

terça-feira, 7 de julho de 2020

Pandemias, riscos existenciais e não existenciais à humanidade

Texto de Luiz Marques*
“Pandemics, Existential and non-Existential Risks to Humanity”, publicado na revista Ambiente e Sociedade, seção especial "Debating ideas - The COVID-19 epoch: Interdisciplinary research towards a new just and sustainable ethics", 23, Junho, 2020

A pandemia causada pelo vírus SARS-Cov-2 deu início a uma era de estagnação econômica estrutural. Com ela, cruza-se o limiar em que os chamados “serviços ecossistêmicos” do planeta começam a se converter em “desserviços ecossistêmicos”. A Covid-19 é um desses desserviços. Em si mesma, ela não constitui, por certo, um risco existencial à humanidade. Mas o que aqui se discute é a existência de uma linha divisória clara entre riscos existenciais e não existenciais. Frequentemente, um risco existencial resulta de um conjunto de crises, que, isoladamente, não ameaçam existencialmente a humanidade. Contudo, combinadas e agindo em sinergia, essas crises têm potencial para tanto. A atual pandemia acena com uma chance de uma grande virada civilizacional, provavelmente a última chance antes que os desequilíbrios ambientais saiam do controle das sociedades.

Palavras-chave: pandemia, sistema alimentar global, desmatamento, crescimento econômico, risco existencial


O presente artigo desenvolve as conclusões de outro, publicado no Jornal da Unicamp em 5 de maio último[1] e replicado na revista Cosmos e Contexto. Convém, portanto, antes de entrar no vivo do que segue, recapitular seu parágrafo final: não é mais plausível esperar, passada a pandemia, um novo ciclo de crescimento econômico global. Algum crescimento por certo voltará a ocorrer, mas será conjuntural e logo truncado pelo caos climático, ecológico e sanitário gerado pelas três crises sistêmicas que se abatem com sempre mais força sobre as sociedades contemporâneas: a emergência climática, o declínio da biodiversidade e a poluição industrial. Não são mais atuais, portanto, as variadas agendas desenvolvimentistas, típicas dos embates ideológicos do século XX, mas que se prolongam como zumbis no século XXI. Pode-se e deve-se aplaudir, por exemplo, os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, mas é cada vez mais patente, em que pesem as denegações de ofício, que nenhum deles será atingido em 2030. Dado que o sistema alimentar globalizado destruidor de habitats silvestres fomenta zoonoses, é bem possível que a década vindoura seja marcada por outras pandemias. Ela será, certamente, marcada por um agravamento de todas as crises socioambientais que já nos afligiam antes da atual crise sanitária. Por difícil que seja admiti-lo, a realidade incontornável é que a agenda política global pós-pandemia será defensiva, adaptativa e gravitará em torno da sobrevivência das sociedades, num mundo doravante mais hostil, posto que sempre mais quente, mais economicamente disfuncional, mais desigual, mais empobrecido biologicamente, muito mais poluído e, por todas essas razões, mais enfermo, mesmo na improvável ausência de outras pandemias. Trata-se, em suma, doravante, de sobreviver como sociedades minimamente organizadas, o que, no contexto atual, não é um programa mínimo. Sobreviver requer, hoje, lutar por algo muito mais ambicioso que os programas socialdemocratas ou revolucionários do século XX. Supõe redefinir o próprio sentido e finalidade da atividade econômica, vale dizer, em última instância, redefinir nossa posição como sociedade e como espécie no âmbito da biosfera.

É daqui que se deve repartir e não é demais insistir na dimensão econômica dessas crises: o capitalismo globalizado pós-pandemia não crescerá mais – senão por breves períodos, localmente e a taxas sempre mais baixas –, impedido que está pelos desequilíbrios crescentes do sistema Terra causados justamente por esse crescimento.
Uma era de estagnação estrutural, com crises de decrescimento econômico forçado, começou. A crise financeira global de 2007-2008 foi seu prelúdio e a engrenagem brutal da globalização começou desde então a emperrar. Muitos são os sintomas disso: a dissociação final entre os mercados financeiros que intensificam a desigualdade e a economia real, o alastramento da pobreza inclusive em países industrializados, a crise da Grécia e o Brexit, aprofundando as regressões do projeto europeu, a ascensão no mundo todo de movimentos e governos de extrema-direita com nítidas características fascistas, da Índia aos EUA, passando pela Europa e, obviamente, o Brasil, e mais recente, a guerra comercial entre os EUA e a China, com riscos crescentes de uma guerra não apenas econômica. Esse processo, no qual o investimento estrangeiro estagnou em relação ao PIB mundial, foi corretamente chamado “slowbalisation” pelo The Economist.[2] Avaliando a recuperação econômica global na década sucessiva à crise financeira de 2008, um artigo (working paper) do FMI (Chen, Mrkaic & Nabar 2019) rightfully reconhece que:

“as perdas após a crise são persistentes, mesmo em países que não sofreram uma crise bancária em 2007-2008. Investimentos lentos são um canal-chave através do qual essas perdas se registram, acompanhadas por prejuízos duradouros de capital e no fator total de produtividade, em relação às tendências pré-crise”.


1.    Uma era de desserviços ecossistêmicos

Essa desaceleração da economia global não é apenas, nem sobretudo, o resultado de disfunções internas cíclicas do modus operandi do capitalismo. Desde finais do século XX, e ainda mais nitidamente ao longo do segundo decênio deste século, emerge com força a percepção de que estávamos nos aproximando de um limiar após o qual os chamados “serviços ecossistêmicos” do planeta começam a se converter em “desserviços ecossistêmicos”. A pandemia atual é um desses desserviços. Essa percepção se manifesta, por exemplo, no manifesto de 2013, intitulado “Consenso Científico sobre a Manutenção dos Sistemas de Suporte à Vida da Humanidade no Século XXI” (Scientific Consensus on Maintaining Humanity’s Life Support Systems in the 21st Century), proposto por Anthony Barnosky e colegas[1], e assinado por mais de 1.300 cientistas, pesquisadores, membros de ONGs, estudantes e o público em geral, em mais de 60 países:

“A Terra está rapidamente se aproximando de um ponto de virada. Os humanos estão causando níveis alarmantes de danos ao nosso planeta. Como cientistas que estudamos a interação entre as pessoas e o resto da biosfera, usando um vasto leque de abordagens, concordamos que há uma abundante evidência de que os humanos estão danificando os sistemas ecológicos de suporte à vida”.

Os dois grandes manifestos promovidos por William Ripple e colegas em 2017 e 2019, com mais de 15 mil signatários, assim como o “SOS de 700 Scientifiques,” publicado no jornal francês Libération, apontam no mesmo sentido de um sistema socioeconômico global que se volta contra si mesmo, em decorrência de suas relações suicidas com o meio ambiente. Em uma entrevista concedida em 2017 à ONG We Love Earth, Dennis Meadows insistia mais uma vez no fato de que os diversos desequilíbrios socioambientais causados pelo crescimento econômico estavam levando o capitalismo globalizado a um processo de colapso:

“Estamos agora num período de colapso, que irá se intensificar. (...) Quando você tem
um crescimento físico num planeta finito, as pressões vão aumentar para fazer cessar esse crescimento. E as mudanças climáticas são uma dessas pressões. (...) Se resolvêssemos esse problema, se pudéssemos de algum modo apertar um botão mágico e eliminar os gases de efeito estufa, então, pelo fato de continuarmos crescendo, teríamos outras pressões maiores em outros setores: escassez hídrica, ou epidemias ou guerras...”

No momento, a pressão mais em evidência é a pandemia, mas ela não é, em si mesma, a mais ameaçadora. Pandemias muito mais letais ocorreram no passado. Após a chamada gripe espanhola de 1918-1919, com seus cerca de 50 milhões de mortes; a influenza A vírus subtipo H2N2, de 1957-1958, comumente chamada pandemia da gripe asiática, causou entre dois e quatro milhões de mortes no mundo todo (Clark 2008), num mundo com cerca de um terço da população de humanos de hoje; a pandemia de gripe de 1968, a Influenza A vírus subtipo H3N2, também chamada gripe de Hong-Kong, matou algo como um milhão de pessoas globalmente, e a HIV/AIDS, iniciada em 1981, já ceifou a vida de mais de 32 milhões de pessoas. E, no entanto, nenhuma dessas crises sanitárias mundiais afetou profundamente a resiliência das sociedades. Por três razões a pandemia atual as golpeia de modo muito mais brutal e duradouro que as anteriores. A primeira é que ela age num mundo que a globalização extrema da economia, iniciada nos anos 1980, tornou muito mais interdependente e, portanto, muito mais vulnerável a perturbações em suas cadeias industriais, agropecuárias e de serviços. Em segundo lugar, o bombardeio global de informação (e desinformação) quase em tempo real pela internet sobre os impactos e sobre a contagem de vidas ceifadas pela pandemia é um fator de estresse emocional não irrelevante. Pouquíssimos são os idosos que ainda se lembram das pandemias de 1957-1958 e de 1968. Mas o trauma da pandemia iniciada em 2020 marcará provavelmente para sempre a memória de todos os que lhe sobreviverem. Em terceiro lugar, a atual pandemia incide num momento em que o crescente emperramento da máquina global, acima aludido, obriga as sociedades a dispenderem muito de sua energia apenas para se manterem minimamente funcionais num quadro já gravíssimo de crises sistêmicas, socioambientais, políticas e psicológicas.

2. A convergência de nove regressões simultâneas

Essas crises exigem delas reações políticas inadiáveis e globalmente concertadas, ao mesmo tempo em que as dividem em dois campos cada vez mais aguerridos e incomunicáveis. De um lado, o establishment estatal-corporativo, determinado a manter a qualquer custo a engrenagem do business as usual, está avançando seus piões no tabuleiro global para garantir que nada mude no sistema energético e alimentar pós-pandemia. De outro, a percepção científica e de setores crescentes da sociedade de que chegamos a um limite além do qual não é mais possível avançar, posto que os malefícios do capitalismo globalizado superam cada vez mais seus benefícios. Para essa percepção contribui a constatação de um conjunto de regressões combinadas na segurança da humanidade: (1) Após décadas de progressos no combate à insegurança alimentar, o número de pessoas sofrendo fome aguda e subnutrição está em ascensão nos últimos quatro anos (FAO 2019). Segundo a quarta avaliação anual da Global Report on Food Crises (GRFC 2020), cerca de 183 milhões de pessoas em 47 países foram classificadas em condições de Estresse (IPC/CH Fase 2), com risco de descambar para uma Crise ou pior (IPC/CH Fase 3 ou acima), se controntadas com um choque ou estressor adicional. A atual pandemia é exatamente esse choque adicional; (2) a aceleração do aquecimento global aproxima o planeta de um aquecimento médio entre 1,5oC e 2oC acima do período pré-industrial e faz dos seis últimos anos (2015-2020) os mais quentes dos últimos 12 milênios; (3) o sistema alimentar globalizado baseado em proteínas animais, fator fundamental de insegurança sanitária, vem capitaneando a supressão de 3,61 milhões de km2 de cobertura arbórea entre 2001 e 2018, segundo o Global Forest Watch; (3) um sistema de pesca industrial pesadamente subsidiado está agora sacrificando o futuro dos oceanos (Pauly 2019); (4) o declínio catastrófico da biodiversidade está aniquilando as populações de vertebrados (LPI 2018) e pode levar à extinção um milhão de espécies nos próximos poucos decênios (IPBES 2019); (5) a acidificação e eutrofização dos oceanos e de vários corpos de água doce estão criando zonas mortas marítimas e ameaçando rupturas nas cadeias tróficas no meio aquático; (6) a poluição industrial intoxica, adoece e mata dezenas de milhões de pessoas por ano no mundo todo; (7) observam-se crescentes tensões geopolíticas, com acirramento de conflitos endêmicos em torno de recursos hídricos e energéticos e a angustiante retomada da corrida armamentista nuclear. A International Campaign to Abolish Nuclear Weapons (ICAN) estima que os nove países dotados de armas nucleares dispenderam USD 72,9 bilhões (USD 35,4 bilhões apenas pelos EUA) em seu arsenal de mais de 13.000 armas nucleares em 2019, um aumento de USD 7,1 bilhões comparado com 2018 (ICAN 2019); (8) a democracia e a tolerância estão crescentemente ameaçadas por vagas mais ou menos orquestradas de fake & hate news, por surtos de fascismo, irracionalidade e violência física e psíquica.


3. Riscos existenciais e não existenciais

Essas e outras múltiplas crises estão interligadas e agem em sinergia, isto é, potenciam-se reciprocamente. E justamente porque são interdependentes e se potenciam reciprocamente não faz sentido tratá-las em separado. Não faz sentido, por exemplo, entender a atual pandemia como uma crise simplesmente sanitária, isolada das demais crises contemporâneas, e muito menos classificar essas crises e hierarquizá-las segundo o maior ou menor risco que representam para a humanidade, tal como proposto pelo Centre for the Study of Existential Risk, da Universidade de Cambridge, ou por trabalhos como o de Toby Ord (2020), um pesquisador do The Future of Humanity Institute da Universidade de Oxford.

As reflexões propostas por esses centros e pesquisadores são muito momentosas. Mas partem de uma premissa falsa ao dividirem os riscos a que estão crescentemente expostos a humanidade e outras espécies em ameaças existenciais e não existenciais. Essa linha divisória não existe. Um risco existencial é, frequentemente, feito de um conjunto de crises, que, isoladamente, não ameaçam existencialmente a humanidade, mas que, em conjunto, têm potencial para tanto. Will Steffen e colegas (2018), por exemplo, exploram a possibilidade de que “um aquecimento médio global de 2oC [acima do período pré-industrial] pode ativar elemento críticos (tipping elements) importantes, elevando ainda mais a temperatura de modo a ativar outros elementos críticos em um efeito dominó que pode levar o sistema Terra a temperaturas ainda maiores”. Esse efeito dominó pode levar ao que os autores chamaram uma Hothouse Earth, em suma, a um planeta largamente inabitável. E, mais uma vez, não há uma linha divisória clara entre um planeta largamente inabitável e um planeta completamente inabitável pela espécie humana e inúmeras outras. Um capítulo escrito para a edição em inglês de meu livro, Capitalism and Environmental Collapse (2020), intitulado Climate Feedbacks and Tipping Points, mostra como é desprovida de sentido a questão, muito debatida na comunidade científica e retomada ainda por Toby Ord, das probabilidades de um aquecimento capaz de gerar o que se chama uma mudança climática desenfreada (a runaway climate change). É necessário devolver a essa questão seu sentido para o que está verdadeiramente em jogo no destino das sociedades. A conjectura “runaway global warming”, temida por um número crescente de cientistas (mas ainda rejeitada pelo IPCC[2]), seria capaz de levar a Terra a condições que prevalecem hoje em Vênus. Essa conjectura pode ser interessante do ponto de vista estritamente científico, mas é totalmente inútil do ponto de vista do destino dos vertebrados, de muitos invertebrados (inclusive os polinizadores) e das florestas, porque esses grandes grupos taxonômicos cessariam de existir sob condições muito menos extremas. Yangyang Xu e Veerabhadran Ramanathan (2017) assim categorizaram os riscos implicados em três níveis de aquecimento global: “>1.5°C como perigoso; >3°C como catastrófico; e >5°C como desconhecido, implicando além de catastrófico, incluindo ameaças existenciais”. Aquecimentos capazes de representar ameaças existenciais à humanidade podem ocorrer ainda neste século. Em todo o caso, um aquecimento médio global já iminente de 1,5oC a 2oC acima do período pré-industrial fomentará pandemias mais frequentes e potencialmente mais destrutivas, além de outras calamidades bem descritas no IPCC’s 2018 Special Report 1.5oC e em numerosos trabalhos ainda mais recentes.

De posse desse entendimento, pode-se perguntar: a atual pandemia representa um risco existencial ou não existencial para a humanidade? Tendo já infectado, até o mês de maio, cerca de cinco milhões de pessoas e feito mais de 320 mil vítimas fatais oficialmente notificadas (segundo estimativas preliminares, os números reais são muito maiores), a atual pandemia não dá ainda sinais de arrefecimento. Nada permite afirmar em maio que o pior já tenha passado, inclusive porque ela continua em sua fase de aceleração no hemisfério sul, podendo afetar ainda um quarto de bilhão de pessoas apenas no continente africano, segundo um modelo recente (McVeigh 2020). Além disso, novas ondas de contágio estão se sucedendo nos países do norte que começavam a debelá-la, e novos surtos podem continuar a ocorrer em 2021. Isso posto, por pior que seja, sabemos que, em si mesma, a Covid-19 não representa, obviamente, uma ameaça existencial para a humanidade. Mas se for capaz de desviar a atenção da sociedade para o que está em jogo, se paralisá-la a ponto de impedi-la de reagir às crises socioambientais acima mencionadas e, sobretudo, se der lugar a tentativas de recuperação econômica ainda mais desesperadas e destrutivas, ela pode vir a se constituir num elo decisivo na cadeia de fatores que levam ao cruzamento de pontos críticos capazes de conduzir a um mundo larga ou completamente inabitável pelos humanos e outras numerosas espécies.
4. Superar o ciclo vicioso que aprisiona o capitalism globalizado

Embora no momento a mais aparente, a pandemia é, em suma, apenas um aspecto da grande ameaça existencial representada pelo capitalismo globalizado. A mãe de todas as ameaças é o círculo vicioso de intensificação destrutiva que aprisiona o capitalismo globalizado: quanto mais esse sistema luta para reverter o declínio de suas taxas de crescimento, mais ambientalmente destrutivo se torna e quanto mais destrutivo se torna, mais os impactos dessa destruição impedem-no de crescer. A Covid-19 é, em grande parte, um dos resultados dessa armadilha, pois o aquecimento global, o desmatamento, a destruição dos habitats selvagens, a domesticação e a criação de aves e mamíferos em escala industrial destroem o equilíbrio evolutivo entre as espécies, facilitando as condições para saltos de inúmeros vírus de uma espécie a outra, inclusive a nossa.

A atual pandemia acena com uma chance, provavelmente a última antes que os desequilíbrios ambientais saiam do controle das sociedades, de uma grande virada civilizacional. O projeto do capitalismo globalizado, na realidade o único possível para ele, é continuar avançando cegamente na lógica da destruição. Poluição e emissões de gases de efeito estufa já estão novamente próximas dos níveis normais na China e James Temple (2020) analisou como:
“a ameaça de mudanças climáticas accelerando rapidamente permanecerá. E estaremos vivendo num mundo mais pobre, com menos oportunidades de trabalho, menos dinheiro para investir em sistemas mais limpo, e medos mais profundos sobre nossa saúde, nosso futuro financeiro e outros perigos à espreita. Essa são condições maduras par inflamar ainda mais instintos nacionalistas, tornando ainda mais árduas as soluções para nossos desafios globais”
Mas é ainda possível escolher outra via e abandonar a lógica ecocida e suicida sobre a qual erigimos nossas sociedades e visões de mundo. Embora muito mais improvável, essa escolha é a única possível se quisermos aumentar significativamente nossas chances de adaptação ao aquecimento médio global de pelo menos mais 1oC em relação à temperatura presente que ocorrerá no próximo quarto de século. Será preciso para tanto redefinir os objetivos e o modo elementar de funcionamento da atividade econômica, redefinição baseada em três princípios basilares:
(1) um sistema energético e alimentar de baixo carbono, baseado principalmente em nutrientes vegetais, produzidos por uma agricultura orgânica, variada e respeitosa dos habitats selvagens. Essa nova agricultura centrada na autossuficiência alimentar dos territórios diminuirá a recorrência das pragas e epidemias, além de minimizar seus impactos;
(2) uma nova ordem jurídico-política internacional, com superação da noção retrógrada e militarista de soberania nacional absoluta, em favor de uma governança global, única forma de coordenar o combate às principais emergências globais: clima, destruição da biodiversidade, poluição e insalubridade;
(3) enfim, uma redefinição, de caráter filosófico e espiritual, da posição do homem no âmbito da biosfera, com abandono do antropocentrismo em favor do biocentrismo.
*Luiz Marques, professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas IFCH da UNICAMP


Referâncias

BARNOSKY, Anthony et al. “Approaching a state shift in Earth’s biosphere”. Nature 486, 7/VI/2012, pp. 52-58.
BARNOSKY, Anthony & Hadly, Elizabeth. End Game: Tipping Point for Planet Earth? London, HarperCollins, 2015.
CLARK, William, Bracing for Armageddon? The Science and Politics of Bioterrorism in America, Oxford University Press, 2008.
FAO, The State of Food Security and Nutrition in the World, Rome 2019.
GUSTIN, Georgina, BRUGGERS, James, TIGUE, Kristoffer & GEARINO, Dan, “Polluting Industries Cash-In on COVID, Harming Climate in the Process”. Inside Climate News, 27/III/2020.
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[1] Ver também Barnosky et al. (2012) e Barnosky & Hadly (2015), capítulo 10: “End Game”.
[2] Ver IPCC 31st Session, Bali 26-29 October 2009, p. 90: “Some thresholds that all would consider dangerous have no support in the literature as having a non-negligible chance of occurring. For instance, a ‘runaway greenhouse effect’—analogous to Venus— appears to have virtually no chance of being induced by anthropogenic activities”.


[1] Ver L. Marques, “A pandemia incide no ano mais importante da história da humanidade. Serão as próximas zoonoses gestadas na Amazônia?”. Jornal da Unicamp, 5/V/2020

[2] “Has covid-19 killed globalisation?”. Editorial. The Economist, 14/V/2020.