O jornal Corriere della Sera, 22-11-2020, publicou um texto até agora inédito, assinado pelo Papa Francisco, intitulado “Transformar o mundo”.
Trata-se de um texto contido no livro “Il cielo sulla terra: amare e servire per trasformare il mondo” [O céu na terra: amar e servir para transformar o mundo], publicado pela Libreria Editrice Vaticana, que estará nas livrarias italianas nesta quarta-feira, 24 de novembro.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ainda é possível crer na possibilidade de um mundo novo mais justo e fraterno? Podemos realmente esperar em uma transformação das sociedades em que vivemos, onde quem domina não seja a lei do mais forte e a arrogância do deus dinheiro, mas sim o respeito pela pessoa e uma lógica da gratuidade?
Imagino a expressão no rosto de muitos, diante dessas palavras, dessas “ingênuas” perguntas. Uma ligeira dobra dos lábios, curvados em um sorrisinho de cepticismo ou, na melhor das hipóteses, de comiseração que nos leva a viver na sociedade do desencanto.
Devemos, portanto, reconhecer que o mundo é imodificável, com as suas injustiças que “clamam por vingança perante Deus”? E a nós, homens da Igreja, resta apenas a tarefa de pregar a passiva resignação ou enunciar, com necessária repetitividade, princípios tão verdadeiros quanto abstratos? Nenhuma mente honesta pode negar a força transformadora do cristianismo no devir da história. Toda vez que a vida cristã se difundiu na sociedade de modo autêntico e livre, ela sempre deixou um traço de humanidade nova no mundo. Desde os primeiros séculos.
A maior novidade no plano social foi a consideração do valor de cada pessoa, sensibilidade que levava a não descartar como inúteis os indivíduos imperfeitos, a tratar com respeito os escravos até sentir como intolerável no tempo a própria instituição da escravidão, o sentimento de repulsa pela crueldade dos jogos dos gladiadores e o “espetáculo do sangue”, a resiliência implementada pelo monaquismo beneditino no tempo dos bárbaros diante do abandono dos campos e da perda de memória da cultura greco-latina, a sóbria beleza das igrejas românicas e o orante “assalto ao céu” das catedrais góticas, a severa rejeição da usura e o preceito moral da “justa mercê” para o operário inserido no catecismo. Um mundo novo, que nascia e ganhava forma, pouco a pouco, dentro de um mundo velho em decadência.
Um pensador francês dos anos 1930, Emmanuel Mounier, dizia que a importante influência do cristianismo na civilização europeia foi mais um “efeito colateral” do testemunho dos primeiros cristãos do que um plano predeterminado; mais a consequência gratuita de uma fé vivida simplesmente do que o resultado de um programa político-cultural elaborado teoricamente (...).
Naturalmente, essa observação também vale historicamente em termos negativos; vimos isto muitas vezes, infelizmente: o cristianismo perde o seu melhor quando acaba se corrompendo e se identificando com as lógicas e estruturas mundanas.
Deixemos a superfície para ir mais fundo; como descer ao coração de uma fonte para descobrir a origem daquela força misteriosa que, de modo imprevisível, empurra os jatos para todos os lados, modificando a paisagem e o território ao seu redor?
Podemos encontrar isso bem exemplificado na experiência do apóstolo dos gentios, Paulo de Tarso, que o Senhor arrancou da sela no caminho de Damasco com o seu olhar poderoso e misericordioso (...).
Paulo não fez nada para encontrar Jesus, a iniciativa não foi dele. Nada que lhe merecesse aquele repentino olhar de amor que Deus dirigiu inesperadamente a um dos seus “inimigos políticos”. Nem mesmo as “boas obras feitas segundo a lei” – diz o Papa Bento XVI – podiam lhe valer a salvação. Uma gratuidade absoluta, à qual o antigo perseguidor não opôs resistência, pelo contrário, com liberdade, a acolheu até sentir esse acontecimento como a nota dominante da sua vida.
A caridade da qual Paulo se torna a apaixonada testemunha e que bem conhecemos através das suas cartas nada mais é do que o reflexo misterioso daquela misericórdia experimentada na sua vida.
As palavras cristãs no nosso tempo muitas vezes evaporam, perdem o seu significado. Amor, caridade... vocábulos que hoje evocam um sentimentalismo vago ou uma filantropia melancólica. Para entender o seu sentido cristão, devemos pensar precisamente na experiência vivida por Paulo, na transformação que ocorreu nele por iniciativa divina; não altera os traços fortes da sua personalidade, não faz com que ele se torne um fraco e irrealista sonhador, mas sim um homem de coração grande, por estar envolvido por um Amor maior.
O seu “Hino à caridade”, na primeira carta aos Coríntios, continua sendo o “manifesto” mais sugestivo da revolução que Cristo traz ao mundo. Verdadeiramente, um dos erros mais antigos e sempre recorrentes na história da Igreja é o pelagianismo, em última análise, um cristianismo sem graça, a fé reduzida a um moralismo, a um titânico e falimentar esforço da vontade.
Agostinho, com razão – tão ciente da ferida estrutural que cada alma carrega dentro de si –, se opôs com todas as suas forças ao erro de Pelágio. De fato, o cristianismo não transformou o mundo antigo com táticas mundanas ou voluntarismos éticos, mas unicamente com o poder do Espírito de Jesus ressuscitado.
Todo o rio de obras de caridade pequenas ou grandes, uma corrente de solidariedade que há 2.000 anos atravessa a história tem essa única fonte. A caridade nasce de uma comoção, de um estupor, de uma Graça. Desde o início, historicamente, a caridade dos cristãos se torna atenção às necessidades das pessoas mais frágeis, das viúvas, dos pobres, dos escravos, dos doentes, dos marginalizados... Compaixão, sofrer com quem sofre, partilha.
Também se torna denúncia das injustiças e compromisso para combatê-las o máximo possível. Porque cuidar de uma pessoa significa abraçar toda a sua condição e ajudá-la a se libertar daquilo que mais a oprime e nega os seus direitos. O primado da Graça não leva à passividade, pelo contrário, centuplica as energias e aumenta a sensibilidade para com as injustiças.
“Não deves crer que roubar significa apenas roubar o teu próximo dos seus bens; se vires o teu vizinho que sofre de fome, de sede, de necessidade, que não tem casa, roupas e sapatos, e não o ajudas, tu o roubas exatamente como quem rouba o dinheiro de uma bolsa ou do caixa. Tu tens o dever de ajudá-lo na necessidade. Pois os teus bens não são teus; tu és apenas o seu administrador, com a tarefa de distribuí-los a quem deles precisa” (Martinho Lutero, “Breviário”).
É um olhar novo que nasce da experiência feita em primeira pessoa da gratuidade do amor de Deus (...). Também é diferente o modo com que o cristão se compromete ao lado dos últimos, que hoje têm o rosto dos idosos solitários, dos trabalhadores precários ou ilegais, dos refugiados, dos deficientes. Esse compromisso não é o preenchimento de um vazio próprio, do qual talvez se tente escapar com um ativismo “entusiasta” que, em longo prazo, não é credível nem se sustenta no tempo.
Um abismo separa os profissionais do entusiasmo do compromisso que nasce da experiência de um dom recebido. Quando nos aproximamos com sinceridade das pessoas vulneráveis, com o desejo de ajudá-las, somos enviados de volta às nossas próprias vulnerabilidades. Todos nós as temos. E todos nós precisamos de cura, todos precisamos ser salvos. Razão pela qual a caridade sincera sempre leva à oração, à mendicância da Presença de Deus, a única que pode curar as feridas interiores nossas e alheias.
FONTE: IHU
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