Todos tememos e sofremos, assistindo, impotentes, à dizimação de milhares, já cerca de dois milhões de vítimas. No Brasil a situação é dramática, porque um governante ensandecido e negacionista, sem qualquer sentimento de empatia, tolera que morram já mais de 300 mil pessoas e cerca de 13 milhões sejam infectados.
Não poder despedir-se dos mortos queridos, nem dizer-lhe um último adeus, e sem poder viver o luto imprescindível causa uma dor silenciosa de romper corações. É a nossa via-sacra de estações sem fim, de lamentos e choros. Celebramos a sexta-feira santa da morte na cruz do Filho do Homem no contexto desta paixão mundial e nacional.Quem nos consolará? Quem nos sustenta a esperança de que a vida ainda uma vez irá triunfar e que poderemos viver livres e sadios, desfrutando da alegria estarmos junto com nossos entes queridos, amigos, amigas e próximos?
Há muitas lições que se podem tirar da crucificação de Jesus, resultado de um duplo processo, religioso e político, seguramente de sentido transcendental como redenção/libertação dos seres humanos. Esta talvez seja a mais profunda. Mas há outros sentidos, humanitários, que podem, na atual situação, nos fortalecer no nosso desamparo e nas horas pesarosas do isolamento social, este que nos rouba a alegria de encontrar os familiares e amigos e poder abraçá-los e beijá-los. Consola-nos pensar que, para os que conseguem crer, não estamos sós em nossa paixão. O Crucificado sofre junto e irá sofrer até o final dos tempos enquanto houver sofredores e desamparados.
São Paulo o expressou adequadamente, numa versão simplificada:”ele não fez caso de sua condição divina, apresentou-se como um simples homem, em solidariedade se fez servo e até não temeu morrer na cruz”(cf.Carta aos Filipenses 2,6-8). Não foi ingenuamente ao encontro da morte. Ao saber que seus opositores decidiram matá-lo, testemunha-o o evangelho de São João, escondeu-se na cidade de Efraim perto do deserto (11,54). Sabemos que Efraim era uma cidade-refúgio. Quem fosse perseguido e ameaçado por qualquer razão, na cidade de Efraim não podia ser pego e estava protegido.Para lá rumou Jesus com seus seguidores.
A Epístola aos Hebreus testemunha:”entre lágrimas suplicou Àquele que o podia salvar da morte”. Versões mais antigas dizem:”e não foi atendido; apesar de ser Filho de Deus, teve que aprender a obedecer por meio do sofrimento”5,7-8).No monte das Oliveiras, no Getsêmani seu temor face à morte iminente o leva a suplicar:”Pai, afasta de mim este cálice; mas não se faça a minha mas a tua vontade”(Lucas 22,42).
O evangelista Lucas relata” cheio de angústia, o suor tornou-se como grossas gotas de sangue a escorrer por terra”(22,44). Jesus foi tomado mais do que pelo medo, mas pelo pavor a ponto de suar sangue, como é atestado em pessoas na iminência de seu enforcamento ou fuzilamento. Mas o paroxismo foi alcançado na cruz: sentindo-se abandonado pelos seguidores e absolutamente só enfrenta a maior tentação pela qual um ser humano pode passar: a tentação da desesperança. “Será que foi tudo em vão? Passei pelo mundo fazendo o bem e eis que me encontro crucificado”. Expressa seu desamparo gritando:“Deus, oh Deus, por que me abandonaste?”(Marcos 15,34). Finalmente, nu por dentro e por fora, entrega-se ao Mistério que se esconde mas que conhece todos os nossos destinos. A última palavra de Jesus, não resignada mas livre, foi:”Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”(Lucas 23,46). São Marcos ainda lembra:”dando um imenso brado, Jesus expirou”(15,37).
Jesus se mostrou o protótipo do ser humano fiel a Deus e a causa de Deus no mundo, a predileção pelos pobres, o amor incondicional e a misericórdia ilimitada, causa essa levada até ao extremo, entregando livremente a própria vida. A recusa humana de sua pessoa e mensagem pode decretar sua crucificação, mas não pode definir o sentido que Jesus conferiu a esta vergonhosa condenação: ser solidário com todos os crucificados e sofredores do mundo.
A ressurreição após seu destino trágico veio mostrar de que lado estava Deus, ao lado dele e de sua vida e causa.Revela a justiça divina contra o justiciamento perpetrado pelo seus opositores.
Uma lição que podemos tirar da sexta-feira da paixão é seguramente esta: nenhum sofredor e prostrado de dor precisa sentir-se só. O Crucificado, agora Ressuscitado e feito o Cristo cósmico, estará sempre junto, sofrendo com quem sofre, dando esperança a quem quase se desespera e mostrando que a página mais importante do livro da vida vem escrita não pelo ódio e pela morte matada, mas pela vida, levada à sua plenificação pela ressurreição. Diz um discípulo tardio de São Paulo, Timóteo:” verdadeira é esta palavra: se padecermos unidos a Cristo, com ele também viveremos”(Segunda Carta,2,11). Eis nossa consolação.
*Leonardo Boff é teólogo e escreveu Paixão de Cristo- paixão do mundo, Vozes 2012 e Via-sacra para quem quer viver, Vozes 2003.
Fonte: Leonardo Boff
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