Caso avance na Câmara dos
Deputados, o PL 6442/2016 – que altera a regulamentação do trabalho rural – pode
significar o maior retrocesso da história do País quando se fala em
trabalhadores, uma perda de direitos ainda mais severa do que aquela pretendida
pela reforma trabalhista. “Esse projeto revoga a Lei Áurea”, resume
o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.
A reportagem é de Dimalice
Nunes, publicada por CartaCapital, 05-05-2017.
O projeto, de autoria do
presidente da bancada ruralista na Câmara, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), foi
protocolado em novembro na Casa e constituído para não “sobrecarregar” o texto
da já polêmica reforma trabalhista. É uma espécie de filhote do PL mãe.
O principal ponto é a
possibilidade do trabalhador rural receber "remuneração
de qualquer espécie", o que significa que o empregador rural poderá pagar
seus empregados com habitação ou comida, e não com salário. A remuneração
também poderá ser feita com parte da produção e concessão de terras.
“Esse projeto de lei
significa uma volta ao passado, significa levar o trabalhador de volta ao
século XIX, quando se trabalhava em troca de comida”, compara Antônio
Lucas, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e
Assalariadas Rurais (Contar).
Assim como a reforma trabalhista, este projeto de lei
reforça pontos como a prevalência do negociado sobre o legislado, a jornada
intermitente e a exclusão das horas usadas no itinerário da jornada de trabalho.
Casa e comida?
Ronaldo Fleury, que atua há cerca de 20 anos no combate ao trabalho escravo,
explica que o projeto de lei tenta legalizar requisitos que hoje são
considerados justamente para determinar se um trabalhador está em condição
análoga à de escravo.
“Fazer pagamento com comida e moradia é uma das
condições que a gente coloca como escravidão moderna, a escravidão por dívida”,
compara.
“Evidentemente, fazer um
pagamento só com casa e comida não faz sentido”, concorda Otávio Pinto
e Silva, sócio do setor trabalhista do escritório de advogados Siqueira
Castro e professor de Direito Trabalhista na Universidade de São Paulo. Ele
lembra que a Constituição Federal trata dos direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais e, em seu artigo sétimo, enumera uma série de
direitos, incluindo o salário mínimo. “O salário mínimo não é definido pela lei
do trabalho rural e o que esse PL muda é exclusivamente a lei
do trabalho rural”, reforça.
Segundo o advogado, o
salário mínimo, por sua vez, é definido pela CLT e tem que ser
composto por uma série de benefícios que estão atrelados a esse valor, entre
eles, alimentação e moradia. Mas esses são alguns dos componentes. A CLT,
quando fala no pagamento em bens e produtos, afirma que pelo menos 30% da
remuneração tem que ser em dinheiro. “Por uma combinação do que está na CLT e
do que está no texto da Constituição, eu entendo que não é possível estabelecer
uma remuneração só com casa e comida”, reforça o advogado trabalhista.
O PL, porém, contempla
esses limites, pois afirma que só poderão ser descontados do empregado rural o
limite de 20% pela moradia e 25% pela alimentação. Isso torna, então, o projeto
constitucional?
Fleury, procurador-geral do Trabalho, diz que não. “O que a CLT fala
é que a remuneração pode se dar, além do pagamento em espécie, com produtos e
outras formas de benefício. Agora, quando o fornecimento da moradia e da comida
são condições essenciais para a realização do trabalho, não pode ser uma forma
de remuneração”, explica.
Um exemplo é o executivo
que tem como parte de sua remuneração um carro. “Ele ganhou o carro para fazer
o trabalho ou por ser diretor? Não é condição essencial”, compara o
procurador-geral. “A realidade do meio rural é o latifúndio. Há fazendas em que
a cidade mais próxima fica a 300 quilômetros, não tem como o trabalhador ir para
casa. Então a moradia é condição para que a pessoa trabalhe lá”, conclui.
A parte mais interessada
nessa história, a dos trabalhadores rurais, ouviu do autor do projeto uma
explicação inusitada e que pouco tem a ver com o que diz a Constituição ou
a CLT. “O deputado Nilson Leitão disse que
entendemos errado, que o que ele quer é presentear o trabalhador no fim da
safra com parte da produção”, conta Antônio Lucas, presidente da Contar.
Para Lucas,
um presente real seria a retirada do projeto de lei. Um segundo presente, uma
ação para reduzir a informalidade, que passa dos 60% entre os trabalhadores do
campo. “Queremos nossos direitos como estão na lei, o salário combinado. Do
jeito que está esse projeto não temos nem como sugerir emendas”, afirma.
Jornada estendida
A perda de
direitos não para por aí. O texto prevê jornadas de até 12 horas e o fim do
descanso semanal, uma vez que passa a ser permitido o trabalho contínuo por até
18 dias. Fica permitida, ainda, a venda integral das férias para os
trabalhadores que residirem no local de trabalho e o trabalho em domingos e
feriados sem a apresentação de laudos de necessidade.
Hoje, a jornada
rural segue a mesma regra da urbana, limitada a 44 horas semanais. No
campo, para essa conta fechar, são turnos de oito horas de segunda a sexta e de
quatro horas aos sábados. Mas quando se fala em trabalho rural – uma atividade
braçal e muitas vezes ao ar livre – oito horas já são extenuantes. Por isso,
como explica Antônio Lucas, são comuns acordos de jornadas de 36
horas semanais, especialmente no plantio e na colheita. “Daí ir para 12 horas é
um completo absurdo”.
Para Otávio Pinto
e Silva, alterar jornada e descanso semanal desconsidera segurança e
medicina do trabalho. “Fazer uma prestação de serviços contínua, sem a previsão
do descanso e em longas jornadas é algo que, caso uma lei dessas venha a ser
aprovada, certamente poderia ser contestada no Supremo Tribunal Federal por
inconstitucionalidade”.
Isso porque, segundo o
advogado, o mesmo artigo sétimo da Constituição, que trata dos
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, determina a limitação da jornada,
intervalo e descanso semanal remunerado.
Mercado sobre a vida
Na opinião de Pinto
e Silva, a existência de um projeto de lei como o 6442/2016 mostra
a articulação da bancada ruralista para reduzir o custo do trabalho no setor
rural.
“Evidentemente, isso é um recado: existe a possibilidade desse
Congresso, com a composição hoje existente, estabelecer mecanismos de
contratação que se mostrem mais adequados para atender as necessidades do
empregador.”
Uma lei dessas, ainda
segundo o advogado, eliminaria a chances de um trabalhador buscar seus direitos
na Justiça. Mesmo mantendo seus empregados na informalidade, o empregador teria
defesa em caso de reclamação trabalhista, já que a jornada e o descanso, por
exemplo, estariam de acordo com a lei.
“É um processo de desconstrução
do direito social. É tratar a sociedade como uma máquina, apenas sob o
ponto de vista econômico”, defende Ronaldo Fleury. Para ele, sob essa ótica, os
direitos sociais se tornam empecilho para que a máquina funcione.
“Então tira-se aposentadoria, direitos trabalhistas e criam-se formas de
contratação que desnaturam totalmente o direito do trabalho. Com isso, se
desmonta o direito social até o ponto de alguém ter coragem de apresentar um
projeto nesse patamar”, afirma se referindo ao PL do deputado Nilson
Leitão. “Primeiro assegura-se a colheita e depois vamos ver se sobrou algum
trabalhador vivo. Isso é botar o interesse econômico na frente
do interesse da manutenção da vida”, conclui o procurador-geral.
FONTE: IHU, CARTA CAPITAL
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